O país tem estado sobretudo entretido com os casos que envolvem figuras do Benfica, mesmo assim encontrou tempo para acompanhar a consagração de Assunção Cristas como presidente do CDS com a nova ambição de liderar o centro e a direita, e de caminho ainda teve tempo para algumas polémicas, algumas a merecer mais atenção, outras sinal do nosso imenso provincianismo.
Comecemos por uma daquelas que só o ódio político que alimenta certos justifica. Num país onde vários antigos governantes que nunca fizeram o seu doutoramento – como Guilherme de Oliveira Martins, Mário Soares, Vítor Constâncio, Luís Amado ou Paulo Macedo – deram ou ainda dão aulas em diferentes instituições do ensino superior, sempre com o estatuto de “professores catedráticos convidados”, o convite do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas ao antigo primeiro-ministro incendiou alguns espíritos. Não vale a pena recapitular muito do que se escreveu, até porque uma parte do que foi colocado nas redes sociais, por exemplo, envergonha mais do que nobilita, mas mesmo assim há alguns textos que, na minha perspectiva, ajudam a enquadrar o problema nas suas vertentes académicas, jurídicas e políticas. Ei-los:
- Em Passos Coelho vai ser professor catedrático convidado. E pode?, uma peça de Cátia Bruno que saiu no Observador, responde-se de forma bastante categórica à pergunta do título, sendo que se ouvem diversas opiniões que, não sendo totalmente coincidentes, mostram ponderação e sensatez. Sem entrar no detalhe da argumentação, há uma nota final deixada por Virgílio Meira Soares, ex-reitor da Universidade de Lisboa e antigo líder da Comissão de Acesso ao Ensino Superior (que se demitiu em protesto em 2013), que julgo merecer destaque: “Das possíveis carreiras profissionais que um ex-primeiro-ministro pode seguir, esta até me parece das menos problemáticas. Parece-me bastante surpreendente este nível de debate”. É bem verdade, cabe-me acrescentar.
- A Universidade que temos, um texto de Alexandre Homem Cristo publicado também aqui no Observador tem sido um dos mais citados no debate público pois nele coloca-se o dedo numa das feridas mais antigas e mais purulentas do nossos sistema universitário: a endogamia, isto é, as instituições que se enchem com os da casa, por vezes com os da família, sem abertura ao exterior e com mais compadrio do que meritocracia. Vale a pena conhecer os números: “Os dados da endogamia universitária falam por si. Na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (UC), todos os docentes de carreira fizeram o seu doutoramento nessa mesma faculdade. Não é arredondamento, é mesmo 100%. (...) Mas há muitos mais exemplos. Ainda em Coimbra, a universidade portuguesa com níveis mais elevados de endogamia, a Faculdade de Medicina tem uma taxa de 97%. Na de Medicina da Universidade do Porto (UP), a taxa de endogamia é só ligeiramente inferior: 93%. E na Faculdade de Letras da UP, a taxa mantém-se nuns elevados 83%. O que quase parece pouco se se comparar com a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (UL), que tem 96% dos seus 165 docentes de carreira doutorados nessa mesma instituição. De resto, na UL, nada de particularmente diferente: a Faculdade de Medicina tem uma taxa de endogamia de 85% e a Faculdade de Direito quase iguala a marca de Coimbra: em 103 professores, apenas um se formou numa outra instituição, resultando numa taxa de endogamia de 99%.”
- O ódio ao professor Passos Coelho, de João Miguel Tavares no Público, é uma reflexão mais política, ao mesmo tempo uma constatação da realidade e um lamento pela forma como a Universidade se tornou, em muitas frentes, sectária: “As faculdades de ciências sociais viraram muito à esquerda, e o ressentimento de professores e alunos, em vez de se dirigir àqueles que transformaram a universidade num coio de amiguismo e endogamia, apontou antes para o famoso “neoliberalismo português”, o peluche político da esquerda nacional, que ocupa um lugar bonito ao lado das fadas e dos unicórnios.” Nem de propósito algumas horas depois da publicação deste texto foi conhecido um abaixo-assinado de docentes e investigadores onde, sem surpresa, pontificam alguns que tiveram papel de relevo da fundação de partidos da nossa esquerda radical.
- A contratação de professores convidados (e o “caso” de Passos Coelho), de Ricardo Morgado, de novo no Observador, é uma análise puramente jurídica do quadro legal do convite feito ao antigo primeiro-ministro. Escreve este jurista que, “no que se refere aos professores catedráticos convidados, estes são recrutados, por convite, de entre individualidades, nacionais ou estrangeiras, cuja “reconhecida competência científica, pedagógica e ou profissional na área ou áreas disciplinares em causa esteja comprovada curricularmente.” No caso concreto, “Passos Coelho foi contratado não pela sua hipotética obra científica ou pelo seu percurso académico e profissional anterior a 2011, mas precisamente pelo seu percurso profissional entre 2011 e 2015 e, mais concretamente, pela sua experiência enquanto Primeiro-Ministro. E aí é que se deve centrar a discussão.”
Mas se este caso fez correr muita tinta sem muita glória, um outro talvez tivesse merecido uma análise mais detalhada. Refiro-me ao caso das obras de manutenção da Ponte 25 de Abril que já deveriam ter sido feitas mas que têm vindo a ser adiadas. A história começou por fazer a capa da Visão da passada semana sendo que, como se escreve no site da publicação, essa investigação precipitou um turbilhão de reações, o que não surpreende já que a necessidade de obras na Ponte 25 de Abril foi identificada em 2016. O dinheiro lá acabou por aparecer depois de serem conhecidas as dúvidas sobre a segurança da ponte, o que levou a jornalista que escreveu a reportagem, Catarina Guerreiro, a notar na SIC Notícias, que "Parece que só quando a VISÃO disse que ia revelar os relatórios é que apareceu a verba para as obras" na Ponte 25 de Abril.
Se não foi exactamente assim que tudo se passou a verdade é que parece que foi, algo que o Expresso destacou em Ponte prega susto a Mário Centeno, texto onde se sublinha que esta “crise pôs a nu cativações feitas pelas Finanças”. Daí a atrapalhação: “A exposição pública do problema e o alarme social gerado pela possibilidade de um “colapso” da ponte devido à falta de obras levaram as Finanças a fazer dois inéditos comunicados durante o dia de quinta-feira.” Comunicados insuficientes para esclarecer tudo o que se passou: “O problema, contudo, não está aí, mas no tempo que as Finanças levaram a dar seguimento ao pedido de verbas extraordinárias — e foi este o ponto explorado por todas as forças políticas. O Ministério das Finanças veio desmentir que essa autorização tenha “tardado” seis meses, mas o Expresso não obteve resposta nem das Finanças nem do Ministério do Planeamento quanto à data concreta em que o pedido foi feito.”
O debate sobre as consequências das famosas cativações é, contudo, apenas um dos debates suscitados por este caso. O outro tem a ver com a questão levantada por Ana Suspiro no Observador: Receitas são privadas, mas Estado paga manutenção. Porquê? Nesse trabalho ela recorda como o “Contrato inicial da Lusoponte tinha contribuição para a manutenção da Ponte 25 de Abril, mas foi eliminada no acerto de contas entre Estado e concessionária. Foi um dos efeitos do bloqueio na ponte.” O texto recorda as várias negociações com a concessionária mas acaba suscitando outro problema, também sem resposta: é que, “apesar dos cerca de 145 mil carros que passam todos os dias na 25 de Abril nos dois sentidos, a Lusoponte não é a única utilizadora da ponte e o principal suspeito dos problemas de desgaste detetados na infraestrutura será o comboio — o suburbano da Fertagus, mas também os comboios de longo curso da CP e até de mercadorias. A comparticipação das duas operadoras ferroviárias será feita através da taxa de uso que pagam à Infraestruturas de Portugal, a empresa que juntou a Refer e a Estradas de Portugal e que é a dona da ponte.”
É bom também recordar que esta foi a primeira PPP e estar bem ciente de como um negócio que parecia muito vantajoso para o Estado se foi tornando, negociação após negociação, num negócio quase ruinoso. Isso é feito de forma muito metódica e recordando os diferentes processos negociais, assim como os vários relatórios do Tribunal de Contas, por Joaquim Miranda Sarmento no jornal online Eco em Lusoponte e Fertagus: A ponte para duas concessões sobre o Tejo. Eis uma passagem muito pertinente da sua argumentação: “O projeto da Lusoponte acabou por ser um mau contrato para o Estado. Mas isso não decorre do contrato inicial, mas sim das sucessivas renegociações entre 1996 e 2001. Que devem servir para reforçar a importância da transparência, do controlo e do reforço de capital humano nas estruturas públicas que negociam com o setor privado, em qualquer área ou negócio. Mas, no final, houve uma transferência significativa de recursos (os tais 500 M€ que estimei), cuja uma parte foi transferência dos contribuintes para os utilizadores da ponte “25 de abril” e outra parte foi transferência dos contribuintes para os acionistas da Lusoponte.”
A forma como essas negociações decorreram levaram Henrique Pereira dos Santos a defender, no blogue Corta-Fitas, que O problema somos nós. Isto porque, entre outras coisas, temos demasiadas vezes tendência para esquecer quem foi o verdadeiro responsável nessas negociações, havendo políticos que sempre tiveram arte para passarem entre os pingos da chuva. Defendo o autor, em concreto, que “Jorge Coelho, de forma sistemática, transferiu riscos dos concessionários para o Estado, renegociando concessões em posição de fragilidade: uma coisa é negociar uma concessão através de um concurso em que todos os concorrentes querem ganhar a concessão, outra coisa é negociar alterações a concessões quando já existe um contrato e só há um concessionário, que tem evidentemente a faca e o queijo na mão.”
E pronto, por hoje fico-me por estes apontamentos breves que espero possam ter iluminado um pouco melhor dois debates algo obscurecidos ou pelo preconceito ou pelo spin político. Tenham bom descanso.
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