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VALDEMAR CRUZ
JORNALISTA
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A parábola do elefante e os massacres na Síria
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Um dia, um príncipe indiano chamou ao seu palácio seis cegos de nascença. Reuniu-os num pátio e de seguida mandou trazer um elefante, animal cuja existência ignoravam. De seguida convidou-os a apalpá-lo. Cada um ateve-se a uma parte do corpo do paquiderme. Quando tiveram de descrever como era o elefante, as opiniões dividiram-se conforme a parte que cada um tocara. A discussão assumiu proporções inesperadas, ao ponto de uns começarem a acusar os outros de desonestidade. O príncipe interrompeu a algazarra criada para lhes dizer que nada do que cada um deles dizia era mentira. Porém, constituía apenas uma parte da verdade. Sugeriu-lhes a humildade de experimentarem juntar a experiência por cada um deles vivida para, então sim, conseguirem imaginar como a junção das partes poderia formar o todo que é o elefante.
Não deverá haver, na história recente, conflito ao qual com tanta e dolorosa veemência se possa aplicar a parábola dos cegos e do elefante como a tragédia vivida na Síria desde há vários anos. Todos os dias, a todas as horas, são disparadas bombas letais, responsáveis por incontáveis mortes de homens, de mulheres, de crianças.
Quando o sofrimento é tanto, quando a dor é tão indescritível, quando a indiferença é tão cruel, quando a morte é o banal respirar de um quotidiano rasgado por veredas afogadas em tanto sangue, tanta raiva, mais absurda se torna ainda a outra guerra, a decorrer em simultâneo. Não no longe de uma Síria devastada. Mas frente ao nosso olhar. Muito perto. À distância de um ecrã de televisão, de uma primeira página de jornal. É uma guerra mediática sem espaço para a memória, sem inocência, sem tempo para a reflexão, sem lugar para perceber como na Síria decorre “uma guerra com muitas guerras dentro”.
A citação que fecha o parágrafo anterior é parte do título de um dos trabalhos publicados na notável edição especial gratuita do Expresso Diário integralmente dedicado à Síria. É indispensável ler. Para quem se contenta com o retrato fragmentado. Ou para quem prefere o retrato inteiro. Desde artigos de opinião, a depoimentos, reportagens e textos de enquadramento, está lá tudo. Ou quase tudo. Outras perspetivas seriam ainda possíveis. O tudo é a impossibilidade de que fala a personagem masculina no primeiro diálogo de “Hiroshima Meu Amor”, de Marguerite Duras (filme de Alain Resnais)? – "Tu não vista nada em Hiroshima. Nada". Ela responde: "Vi tudo. Tudo".
O filósofo britânico, economista e defensor do liberalismo político Jon Stuart Mill (1806-1873),dizia que aquele que só conhece o seu lado do problema, na verdade não conhece nada. E a Síria é um problema com muitos lados. Demasiados lados.
Daí a relevância desta edição do Expresso Diário. Ficará como documento. Como registo de uma memória. Essa mesma memória que nos faz recordar a fala da mulher em “Hiroshima Meu Amor”, quando diz: “Como tu, também eu tentei lutar com todas as minhas forças contra o esquecimento. Como tu, esqueci. Como tu, desejei ter uma memória inconsolável, uma memória de sombras de pedra”.
O esquecimento é tão poderoso como a morte. Por isso é crucial não esquecer. Já que, como se diz no Diário, a Síria é o tabuleiro e os sírios os peões de uma guerra de xadrez que, um dia, será lembrada como o grande conflito mundial deste milénio. Entre motivações estratégicas, financeiras, políticas e religiosas há todo um mapa de interesses que, direta ou indiretamente, contribuíram para a morte de centenas de milhares de pessoas nos últimos sete anos.
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OUTRAS NOTÍCIAS (DE OUTRAS GUERRAS)
A guerra é a guerra. Mesmo quando julgamos viver um simulacro de paz, há sempre alguém a pensar na pretérita, na presente e nas futuras guerras. Porque a guerra não para. Nunca parou. Agora foi a vez de falar Vladimir Putin. No seu discurso sobre o estado da Nação, o último antes das eleições, anunciou que a Rússia possui novas e invencíveis armas nucleares. Garantiu ter sido testado um míssil nuclear capaz de atingir qualquer ponto do mundo. Putin Assegurou que o novo projétil não pode ser detetado pelos sistemas antimíssil. A guerra é a guerra. Aguardemos a resposta. Chegará do outro lado do Atlântico. Para já, uma amostra. Os EUA acusam Putin de violar os tratados sobre armas de 1987. A guerra segue dentro de momentos.
A guerra encarna muitas variantes. A económica não é das mais brandas. A União Europeia já anunciou uma “resposta firme” às taxas de importação prometidas por Washington sobre o aço (25%) e o alumínio (10%) que entrem nos EUA. Jean-Claude Juncker afirmou que a União não ficará sentada a ver os efeitos de uma medida que, diz, coloca “em risco milhares de postos de trabalho na Europa".
Na guerra pela independência catalã, Carles Puigdemont dá um passo ao lado, e renuncia à investidura como presidente da Generalitat para permitir a candidatura de Jordi Sánchez, número dois da sua lista (Junts per Catalunya) e atualmente em prisão preventiva.
A guerra pela igualdade humana é feita de avanços e recuos. (Veja em baixo O que ando a ler). O Guardian publica um artigo de fundo intitulado “O indesejável regresso da ‘ciência da raça’”. É, de alguma forma, a mancha humana de que também falava Philip Roth. O texto explora a defesa que tem vindo a ser feita por alguns antropólogos, psicólogos, ou investigadores, segundo os quais algumas raças são, por inerência, mais inteligentes que outras. Os autores da tese intitulam-se a eles próprios “nobres dissidentes”.
A guerra do clima agrava-se dia a dia. Não é pelas ocasionais chuvas, ainda assim raras e pouco eficazes. Não é pelos ocasionais e inesperados nevões, por exemplo em Londres, como mostra este vídeo do The Independent. É sobretudo por uma política global de cegueiraque pode estar a conduzir o planeta para o abismo. Os sinais estão aí. Todos os dias. Como se vê, neste bom artigo de The New Yorker, sobre o que se passa com a seca na cidade do Cabo e as ameaças do dia zero, ou seja, sem água. Ou como o comprova este fantástico trabalho da NASA sobre os efeitos de um inverno invulgarmente quente no Ártico.
POR CÁ
Mais de 73% dos trabalhadores da Autoeuropa aprovaram em referendo o novo acordo laboral, que prevê aumentos salariais de 3,2%, com um mínimo de 25 euros. O pré-acordo abrange várias questões que faziam parte do caderno reivindicativo da Comissão de Trabalhadores, mas nada adianta em relação aos novos horários de trabalho que entram em vigor a partir de agosto, quando a fábrica passar a um regime de laboração contínua.
A EDP continua a dar lucro. Mas é um lucro que já não reverte a favor dos cofres do Estado português. Isto é, de todos nós. Fechou 2017 com um lucro de 1113 milhões de euros, mais 16% do que em 2016, naquele que foi o melhor resultado dos últimos seis anos.
É a principal notícia do JN. Milhares de trabalhadores portugueses foram burlados com a promessa de empregos falsos no Qatar. Há um réu a ser julgado no Tribunal de S. João Novo, no Porto. A pretexto do Mundial de Futebol de 2022 no Qatar, prometia ordenados entre quatro e seis mil euros. Pelo caminho exigia uma joia de inscrição aos candidatos. O burlão, que usava identidades falsas, tem 15 processos em todo o país.
Já conhece a Biblioteca de Literacia em Saúde? O objetivo é promover o acesso à informação sobre saúde, de modo a podermos ser mais autónomos em relação à nossa saúde e à dos que nos rodeiam. Permite pesquisa por vários temas e abre logo com uma seleção de seis grandes grupos de interesse: nascer com saúde; crescer em segurança; juventude à procura de um futuro saudável; vida adulta produtiva; envelhecimento ativo e fim de vida.
Se gostava de possuir uma aldeia, tem aqui a sua oportunidade. Foi posta à venda uma aldeia na zona de Arouca, que tem o Geopark como Património Geológico da Humanidade, a Serra da Freita ou a muito visitada Frecha da Mizarela. O património em venda é constituído por 11 casas típicas, algumas destinadas a reconstrução. Porventura o único óbice para o comum dos leitores será o preço: 600 mil euros.
PRIMEIRAS PÁGINAS
Portugueses da Califórnia zangados vão ter Costa mas queriam Marcelo – DN
Desemprego real é o dobro do que mostram os números oficiais – Público
Altice acusa Vodafone de colocar pessoas e bens em risco – I
Milhares de trabalhadores burlados com empregos falsos no Qatar – JN
Putin declara-se na posse de um arsenal invencível - El País
Governo sem dinheiro para pagar a professores – Correio da Manhã
Hospitais privados e ADSE chegam a acordo parcial – Negócios
Quarto clássico entre Dragões e Leões aquece a corrida ao título – O Jogo
O clássico é redondo – A Bola
Fome de Título – Record
FRASES
"Não há nenhuma aproximação ao PS, a aproximação é a mesma que há ao CDS”. Rui Rio, presidente do PSD, após almoço com Assunção Cristas
"Este grupo parlamentar foi insultado, maltratado e desrespeitado”. Paula Teixeira da Cruz, deputada do PSD
“Todos nós fizemos uma catarse”. Fernando Negrão, líder da bancada do PSD após ter pedido desculpa aos deputados por algum excesso de linguagem
“Vieira da Silva foi de longe o ministro com quem avançámos com políticas de ‘direita’”. Francisco van Zeller, ex-presidente da CIP em entrevista ao Negócios
O QUE ANDO A LER
Não somos racistas. Não somos racistas? Ou será que gostamos de acreditar que não carregamos a mancha, mesmo se a mancha anda por aí? A relação dos portugueses com o racismo e a ideia muito generalizada de que não alimentamos o gérmen racista é um dos maiores mitos urbanos com o qual convivemos no dia-a-dia.
Duas leituras recentes ajudam a recentrar o problema. Na edição desta semana da revista do El País há um texto dedicado ao preconceito. Aquele preconceito sub-reptício, do qual podemos nem ter consciência, mas que condiciona muitas das nossas decisões. Ou seja, o preconceito que nos leva a excluir ou marginalizar todos quantos não se enquadrem nos nossos esquemas mentais.
Como somos subjetivos, podemos socorrer-nos de mil e uma justificações, mas, na verdade, escreve Pilar Jericó, “a maior parte das vezes movemo-nos por critérios inconscientes”, que nos levam a tomar decisões sem fundamento. Como dar por adquirido que os homens estão melhor qualificados que as mulheres para cargos diretivos. Ou rejeitar alguém no acesso a um emprego devido à sua orientação sexual”.
O preconceito leva-nos a excluir outras pessoas pelo simples facto de serem diferentes. Como os ciganos. E isso leva-nos a dois bem mais longos textos. Estão publicado na edição de janeiro do Le Monde Diplomatique, e confrontam-nos com dados arrepiantes. Daqueles capazes de abalar consciências.
Conhece-se o contexto. Ao longo de séculos os ciganos têm vindo a ser perseguidos. As acusações são, invariavelmente, sempre as mesmas. São catalogados como ladrões e intrujões, desordeiros e preguiçosos. Ou então traficantes e criminosos.
No artigo intitulado “Comunidades ciganas: consistências sociais ao longo dos tempos”, Manuel Carlos Silva e Sílvia Gomes, sociólogos da Universidade do Minho, responsáveis por um estudo sobre o tema em comunidades de Braga e Guimarães, demonstram que a perseguição aos ciganos, materializada em práticas de descriminação e racismo, é ancestral.
As comunidades ciganas vivem em pobreza relativa e, em alguns casos, em pobreza absoluta, “pois estão sujeitas a numerosas formas de estigmatização, marginalização e segregação socioespacial”.
Embora sejam conhecidos casos de envolvimento no tráfico de droga e haja uma percentagem considerável de famílias a receber o Rendimento Social de Inserção, os sociólogos concluem que “a disseminação generalizada de que as famílias ciganas vivem exclusivamente desse rendimento e estão envolvidas no tráfico de drogas é abusiva e estereotipada, uma vez que os dados mostram que a grande maioria vive das suas atividades profissionais”.
Num outro trabalho, Piménio Ferreira, ativista cigano, mestre em Engenharia Física e dirigente do SOS Racismo, defende que “o racismo institucional é sistémico", e assegura que Portugal tem sido profícuo "em produzir leis e decretos que perseguem explicitamente ciganos desde o século XV até ao século XXI, inclusive. Com efeito, é possível encontrar leis ou regulamentos anti-ciganos datados de 2015…”.
Numa nota ao texto, Piménio Ferreira especifica que o regulamento a que se refere é a proibição de usufruto, a pessoas ciganas, das piscinas públicas por parte da Câmara Municipal de Estremoz.
Portugal é muito mais complicado que as três sílabas que o verbalizam. Já o dizia – neste poema– Alexandre O’Neill.
Tenha um bom dia. Para quem gosta, logo há um FC Porto – Sporting. Como aperitivo, leia este belo poema sobre o mágico momento do golo, assinado pelo grande poeta brasileiro Ferreira Gullar, Prémio Camões 2010.
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