Mais um fim-de-semana e eis que, no pino do Verão e da época balnear, eis que nos encontramos a desejar que não venha por aí muito calor, pois sabemos até que ponto o país provou estar vulnerável a grandes incêndios florestais. Também por isso decidi dividir o Macroscópio de hoje em duas partes: uma primeira onde regressarei ao tema dos incêndios, para breves referências a artigos que vale a pena serem lidos, e uma segunda parte com uma selecção de alguns textos interessantes sobre estes dias que correm.
Começando pelos incêndios, terminamos uma semana dominada pela evolução do fogo que começou na Sertã e progrediu atá à margem sul do Tejo, devastando pelo caminho concelho de Mação – um concelho que não era como os outros, pois dispunha de um sistema mais evoluído de protecção civil e autarcas realmente preocupados com a floresta e conhecedores dos seus problemas. Aqui ficam algumas leituras onde isso mesmo é destacado:
- Mação a braços com o seu “pior incêndio”: uma história trágico-florestal em seis pontos, um trabalho de Paulo Paixão no Expresso que recupera uma reportagem recentemente realizada naquele concelho e sistematiza o que ali era diferente mas não foi suficiente para evitar a tragédia.
- O concelho-modelo no combate aos fogos ardeu. O que falhou?, de Rita Tavares no Observador, onde se recordam as declarações do vice-presidente da autarquia, António Louro, numa audição no âmbito da reforma das florestas, altura em que disse verdades que deveriam ter feito corar alguns dos políticos que responsabilidades passadas e presentes neste sector.
- Imagens da NASA mostram o que correu mal no incêndio de Mação, um trabalho do Observador a partir da análise de imagens de satélite que mostram como o incêndio evoluiu, apontando para uma estratégia de combate errada, por mau posicionamento dos meios e prioridades erradas do comando operacional.
- Dois minutos e 31 segundos duros: Mação, uma peça impressionante da SIC Notícias, realizada com base em imagens recolhidas por um drone.
- A aldeia que se salvou em Mação: “Se me tivesse atrasado cinco minutos tínhamos aqui uma tragédia como Pedrógão”, uma muito boa reportagem de Pedro Jorge Castro e João Porfírio, que seguiram uma equipa do GIPS, o Grupo de Intervenção, Protecção e Socorro da GNR, mostrando como há formas diferentes de intervir num incêndio e relatando o milagre que testemunharam em Gardete, a 20 km de Mação, onde por pouco não se repetiu uma tragédia como a de Pedrógão Grande.
A semana foi também marcada pela polémica em torno da lista das vítimas de Pedrógão, uma polémica aberta por uma investigação do Expresso onde era revelado que o número total de mortos podia não ser 64. Não vou revisitar a controvérsia política, mas não posso deixar de lembrar um texto do director daquele semanário, Pedro Santos Guerreiro:
A 65ª vítima. Nele escreve-se algo essencial: “
A disponibilidade tardia do primeiro-ministro para não dar por encerrado o caso das vítimas da tragédia em Pedrógão é um passo para a verdade. Isso conseguiu-se sim pela pressão dos jornais, pela pressão das notícias, pela pressão de uma opinião pública informada.”
Dessa pressão resultou o levantamento de um bizantino “segredo de justiça” sobre a identidade das vítimas, sendo possível confirmar os 65 nomes identificados pelo Expresso num texto incontornável:
Memorial das vítimas: homenagem a quem morreu na tragédia de Pedrógão Grande. Depois de o Ministério Público ter confirmado esses nomes e ainda acrescentado mais um, o Observador não se limitou a publicar a lista, tratou de contar a história de cada uma daquelas pessoas em
PGR divulga nomes das 64 vítimas de Pedrógão Grande. Estas são as suas histórias.
Há ainda muitas dúvidas por esclarecer, tantos que o Público escreveu sobre
Os tabus oficiais sobre a tragédia de Pedrógão. Trata-se de um texto onde David Dinis e Liliana Valente fazem a recapitulação das dezenas de perguntas dirigidas por aquele diário a organismos oficiais para procurar saber o que falhou na tragédia, sendo que praticamente todas ficaram sem resposta. E como continuam sem resposta, é sempre bom tê-las presentes, até como sinal da pouca transparência que tem marcado a relação das autoridades com a opinião pública.
Essa falta de transparência, assim como medidas como a centralização e controle de toda a informação relativa aos incêndios na sede da Protecção Civil, em Alfragide, suscitou alguns textos de opinião, por regra bastante críticos. Recordo aqui apenas os saídos no Observador:
- Se isto é um primeiro-ministro, uma crónica da minha autoria onde faço uma recapitulação de todas as responsabilidades passadas e presentes de António Costa neste dossier e defendo que não estamos perante um “problema de comunicação”, mas sim perante uma desejo deliberado de ocultação para proteger o primeiro-ministro.
- Um homem muito perigoso, de Paulo Tunhas, um texto onde se defende que “António Costa minguou aos olhos de todos – e minguou também aos seus próprios olhos, por mais que tente disfarçar este aspecto das coisas.” Pior: que isso o faz recorrer a táticas políticas muito criticáveis.
- Pedrógão Grande: quem tem medo da "politização"?, de Rui Ramos, a defesa da ideia de que esta tragédia “por causa dos 64 mortos e por causa das legítimas suspeitas de impreparação e de desnorte dos serviços do Estado, pode e deve ser “politizada”, isto é, ser objecto de debate público, de investigação jornalística e de iniciativas parlamentares, e que é essa “politização” que verdadeiramente distingue a democracia da ditadura.”
Passemos agora a um conjunto de outras referências, assumindo o autor deste Macroscópio que se trata de uma selecção pessoal de textos sobre temas importantes da actualidade, textos num registo pertinente e original:
- Loures, de Henrique Raposo no Expresso do passado sábado, onde se regressa ao tema dos ciganos partindo da experiência muito pessoal do autor: “Confesso que invejo esta classe média citadina e de esquerda que nunca viveu num ambiente de violência suburbana. Já a invejei com ressentimento. A minha vida e carreira teriam sido mais fáceis se tivesse Marx e não Hobbes na mesa de cabeceira. Hoje invejo-a apenas, sabendo que seria um homem mais feliz se o medo diário gerado por gangues de ciganos, negros e (não me prendam já) brancos não tivesse marcado o meu dia a dia. Mas, invejas à parte, era importante que não se confundisse o evidente populismo desta nova e desventurada personagem com o problema real e antigo que existe em Loures e na Grande Lisboa em geral.”
- O fim da Anacom, de Nuno Garoupa no Diário de Notícias, onde se reflecte sobre o significado das escolhas do Governo para a entidade reguladora das telecomunicações: “O governo optou, pois, por um modelo de regulação que valoriza fidelidades partidárias (em detrimento da independência política) e uma relação próxima com a empresa preponderante do setor regulado (em detrimento de "descapturar" o regulador). A opção do governo é absolutamente legítima do ponto de vista democrático. O governo quer acabar com a Anacom enquanto autoridade reguladora e transformá-la numa direção-geral.”
- Um dia podemos ser nós, de Helena Garrido no Observador, uma reflexão onde também se referem as escolhas governamentais para a Anacom, se recordam os ataques ao Banco de Portugal e ao Conselho de Finanças Públicas, se fala da “lei da rolha” nos incêndios, na reacção oficial ao roubo em Tancos e ainda nos tom dos ataques a António Ventura e Gentil Martins, assim como em novos ataques a jornalistas, para concluir que “Estamos a olhar para sintomas na nossa sociedade que nos deviam preocupar. Porque, para agora citar livremente uma frase atribuída a Bertolt Brecht, hoje o que se passa pode estar a ter efeitos negativos na outra tribo ou partido que não é o nosso. Ou pode estar a condicionar a opinião de pessoas de quem discordamos. Amanhã pode começar a acontecer com os nossos amigos. Um dia estará a acontecer connosco. E já pode ser tarde de mais.”
- Lisboa aos lisboetas! é um texto delicioso de João Taborda da Gama no Diário de Notícias, muito a propósito de certos discursos políticos. Pequeno extracto: “Quem são os lisboetas? Quando falamos de uma Lisboa para os lisboetas estamos a falar de quê? De uma Lisboa para mim, que aqui nasci e vivo? Mesmo com um pai açoriano e uma mãe transmontana, e tendo vivido dois anos nos Estados Unidos? E a minha mulher, que nasceu em Viseu e veio para cá estudar? Ou é preciso ser dos quatro costados? É que isso quase ninguém é, nem os meus filhos. Fernando Medina nasceu no Porto, Teresa Leal Coelho em Moçambique, Assunção Cristas em Angola, Ricardo Robles em Almada. João Ferreira, o único que nasceu em Lisboa, vive em Bruxelas há oito anos. São lisboetas? E a investigadora americana da Fundação Champalimaud que está cá há quatro anos a cuidar dos cancros das nossas tias? E a brasileira ilegal da Rua de Arroios é lisboeta?”
- Sexo forçado no tribunal, de Luís Aguiar-Conraria no Observador, e O sexo, a idade e os tribunais, de Francisco Teixeira da Mota no Público, abordam com grande acutilância a forma como alguns tribunais portuguesas tratam um tema como a sexualidade, partindo do caso recente da condenação de Portugal no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem precisamente por causa de uma inaudita sentença do nosso Supremo Tribunal.
Para o fim deixei dois textos muito diferentes – e completamente diferentes dos anteriores.
Chaos City, de Josef Joffe na The American Interest, é uma interessantíssima reflexão sobre o tipo de manifestantes que causam o caos em eventos como o último encontro do G20 em Hamburgo. Julgo que esta passagem é capaz de vos abrir o apetite: “
The emblem of the French revolutionaries was the republican cocarde in red, white and blue, that of the Bolsheviks the five-pronged yellow star. Today’s would-be revolutionaries sport a latest-generation smartphone. They roar “Down With Fascism!” or “Solidarity Without Borders,” as the posters on Hamburg’s university campus had it. But first, let’s get a selfie. In academic terms, this is not revolutionary, but “expressive politics,” with myself at center stage. To put it more harshly, it is narcissism posing as heroism. Decked out in street-chic clothes, the lady and her comrades-in-clicking have spawned a new meme: the “riot hipster.” In Google, it gets over 100,000 entries.”
Finalmente, uma “pièce de resistance”, isto é, um texto que exige algum tempo mas cuja leitura mais do que compensa. Refiro-me à entrevista de João Pedro George ao jornal i,
"A promiscuidade no meio cultural é asquerosa". Nesta conversa com Diogo Vaz Pinto o crítico literário não poupa quase ninguém – e as suas críticas vão de Miguel Sousa Tavares a Margarida Rebelo Pinto, passando por António Lobo Antunes –, quase só sobrevivendo um herói maldito, Luiz Pacheco. Quanto à passagem que sustenta o título, aqui fica a sua transcrição: “
Existe uma promiscuidade entre os críticos, as editoras… Disso não tenho dúvida absolutamente nenhuma, porque embora não tenha amigos no meio, conheço-o bastante bem. Trabalho com muitas editoras e conversas de corredor tenho tido muitas. Nesse meio já fiz de tudo, desde índices remissivos, a reescrever livros de outros de uma ponta à outra, ou seja, já me movimentei muito nas editoras e, por essa razão, não tenho qualquer ingenuidade relativamente às relações entre críticos e editoras, sobretudo. Conheço muitas histórias e posso dizer que a promiscuidade no meio é até asquerosa.”
E pronto. Um gin é bom companheiro para acompanhar a leitura desta última entrevista, um alka selzer talvez ajude a digerir o muito de indigesto que nos revelam os textos sobre os incêndios e sobre alguns dos nossos hábitos políticos. De resto, desejo-vos um bom fim-de-semana – com calor
q.b..