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POR PEDRO SANTOS GUERREIRO
Diretor
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10 de Janeiro de 2017 |
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Hoje é a nossa vez
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Nunca fizemos o funeral de Humberto Delgado. Nunca lhe encontrámos os restos mortais num covil, quelha ou ardil onde os agentes da PIDE o assassinaram para subsistência da ditadura covarde que oprimia, calava, prendia, vivendo da morte do espírito, prosperando sobre a pobreza de um povo, agrupando-se no isolamento do país. Nunca fizemos o funeral de Humberto Delgado mas sairíamos hoje todos para a rua, mais de 50 anos depois, se pudéssemos achar os restos mortais desse sem-medo que nos quis libertar – e que por isso morreu.
Hoje podemos fazer o funeral de Mário Soares. Todos, como país. Morrer de velho choca menos que morrer mártir, mas é menor a gratidão, o reconhecimento, o exemplo, o legado? Não, é apenas uma morte natural. Mas é pela vida que vamos. E se não vamos, que seja por discordância, nunca por indiferença. Nunca por indiferença.
É nos Jerónimos, onde Soares cumpriu um desígnio político: depois da liberdade, depois da descolonização, o projeto europeu. “Nestes claustros velhos de quatro séculos juntam-se hoje o passado e o futuro de Portugal”, leu ele ali em 1985, na adesão de Portugal às Comunidades Europeias. É preciso cumpri-lo hoje de novo: juntar hoje o passado e o futuro de Portugal. Esta já não é a história de Mário Soares, é a nossa história depois dele. “Os jovens terão agora de saber mobilizar-se para a grande tarefa nacional do desenvolvimento e da modernização, por forma a que Portugal venha a ser não só terra de liberdade, de convivência cívica e de tolerância, mas também um espaço de prosperidade, de desenvolvimento científico e tecnológico e de justiça social.” Podia ser lido hoje. Mas não pode mais ser ele a escrevê-lo. Podemos nós.
Jovens somos todos nós e os que sabemos tudo de Soares, de Delgado, da ditadura e de todos os homens que a combateram temos o dever de contar àqueles que só conhecem a liberdade quão vulnerável ela é e aos que só conhecem a democracia quão ilusória ela pode ser. Uma advertência de Zygmunt Bauman, a que já voltaremos pois não mais o veremos nas nossas cidades: “Crise de democracia é uma abreviação, uma noção limitada. Em países com constituições democráticas, a crise de um Estado-nação territorialmente confinado é culpa (afirmação fácil, mas não muito competente) de seus órgãos e características definidos constitucionalmente, com a divisão de poderes, liberdade de expressão, equilíbrio de poderes, direitos das minorias”.
Olhai a Europa. Olhai os Estados Unidos. Olhai por Mário Soares. Olhemos por nós.
Há dias na vida que só são dias quaisquer se quisermos ou deixarmos que a nossa vida seja qualquer. Hoje não é um dia qualquer, é o dia em que podemos fazer o funeral de Mário Soares, que viveu pela liberdade e pela democracia, que foi ativista e político, sem-medo que lutou por um país orgulhosamente acompanhado, moderno, livre.
“O homem que no século XX tornou Portugal explicável ao mundo e no século XXI tornou o mundo explicável aos portugueses”, escreve a cientista Maria de Sousa, num dos muitos depoimentos e artigos que o Expresso está a publicar, num trabalho que culminará numa edição especial no próximo sábado nas bancas. Incluindo esta fotografia, que Rui Ochôa tirou quando o Expresso juntou três pessoas que simbolizavam uma era, um país: Soares, Amália e Eusébio. Hoje vai a enterrar o último de todos, num funeral que, como os outros, merece o povo na rua e a rua do povo. O povo somos nós.
Soares não cria na imortalidade, mas acreditava na memória histórica. “Cada um de nós, depois da morte, julgo eu, vive apenas na memória dos que ficam”. Ficamos nós, transitoriamente, transitivamente.
Viva Soares. Viva em nós. Vamos para a rua, para a rua verdadeira, onde há calçada de pedra e frio de janeiro. Foi lá que a liberdade se conquistou e que a democracia não se perdeu. É lá que nos encontramos com o país e vivemos como país. Em liberdade, pela liberdade, porque ela não é nossa, mas depende de cada um de nós. Entre o passado e o futuro, dizemos presente. Entre o passado e o futuro, nós. |
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OUTRAS NOTÍCIAS O que é que o governo quer fazer do Novo Banco?
A) Vender (com prejuízo) B) Nacionalizar (com prejuízo) C) Nacionalizar e vender (com prejuízo) D) Hã?...
“Com prejuízo” é a constante nas alternativas e, de uma forma ou de outra, não só grande parte dos 4,9 mil milhões de euros injetados em 2014 estão perdidos como é preciso injetar mais 750 milhões só este ano. Logo: “com prejuízo”. “É tentar perceber como vamos perder mais”, lança Miguel Sousa Tavares na SIC.
Evidência: “com prejuízo” para o Estado. Vidência: o governo vai tentar ganhar tempo (esticando as negociações que, uma vez falhadas, levarão a querer nacionalizar para vender depois) ou encontrar uma forma de escamotear o prejuízo (transferindo por exemplo “ativos afinal maus” do “banco bom” para um “veículo péssimo”). Para já, tem de resolver o assunto com Bruxelas, a quem jurou no verão que ou vendia o Novo Banco ou o liquidava – mas a venda está parada porque é “com prejuízo” e a liquidação está afastada porque seria inevitavelmente “com prejuízo”.
Nacionalizar é difícil porque choca com as regras europeias, explica o Negócios em manchete, onde André Veríssimo exclama que “já nenhuma solução é boa”. “Era bom que o Banco de Portugal se explicasse. Como é que ainda falta dinheiro no Novo Banco?”, questiona Mariana Mortágua no Jornal de Notícias, antes de acusar o supervisor de “incompetência”.
Capital, capital, sempre mais capital. No BCP, foi ontem anunciado um aumento de 1,3 mil milhões de euros, que é mais do que o banco inteiro vale em Bolsa. Para convencer os acionistas a entrar com mais dinheiro, as novas ações vão ser subscritas com um desconto de 38,6%, explica o Eco. E o banco fica mais chinês.
Entra cacau, saem cocos: o capital servirá para o BCP pagar na totalidade as suas dívidas ao Estado português, 700 milhões dos chamados CoCos (obrigações que, se não forem pagas, são convertidas em ações). O BCP cumpre o quarto aumento de capital desde 2011: os seus acionistas injectaram um espantoso total de 4,3 mil milhões no banco em seis anos, contabiliza o Negócios. Safa…
O governo desconfia dos preços dos combustíveis e, como revelou o semanário Expresso no sábado, o secretário de Estado da Energia, Jorge Seguro Sanches, pediu à Autoridade da Concorrência para estudar as margens das gasolineiras. Mas a entidade já disse que a descida do preço também está nas mãos do próprio governo. Só nas nossas é que não está.
Os operadores judiciários querem custas judiciais mais reduzidas, escreve o Diário de Notícias. Os valores atuais, dizem, são muito elevados. “É mesmo um escândalo", declara Guilherme Figueiredo, novo bastonário da Ordem dos Advogados.
Messi amuou e não apareceu na festa em que Cristiano Ronaldo fechou o seu “melhor ano de sempre” com a vitória anunciada ontem de melhor jogador do mundo em 2017 para a FIFA. Um ano cheio de t(r)aças, como escreve a Lídia Paralta Gomes na Tribuna Expresso. “Alguém foi considerado o melhor jogador do mundo - pela segunda vez em menos de um mês”, acrescenta o Diogo Pombo, que falou com o senhor Aurélio Pereira. Quem? Ora veja aqui.
A Yahoo! vai passar a chamar-se Altaba.
A Uber, esse negócio dito colossal, teve nos últimos nove meses um resultado de 2,2 mil milhões de dólares… negativos.
Chama-se Oliver Schmidt, executivo da Volkswagen, e foi detido pelo FBI na Flórida, no âmbito do escândalo de manipulação de emissões poluentes, avança o “The New York Times”. Schmidt é suspeito de estar envolvido na conspiração para impedir que os fiscais norte-americanos descobrissem que veículos da companhia foram programados para manipular os testes.
Nos Estados Unidos, a notícia de ontem foi o discurso de Meryl Streep nos Globos de Ouro, que, sem nomeá-lo, criticou Donald Trump com pungência e eficácia. A Paula Cosme Pinto explica o que se passou.
Já Trump… nomeou o seu genro como conselheiro principal da Casa Branca. Estamos a entrar na transição de poder nos Estados Unidos “mais convulsa”, analisa o El Pais: inicia-se hoje o exame do Congresso aos nomeados pelo Presidente para os cargos mais relevantes.
Entretanto, “estamos a assistir a um namoro entre o futuro Presidente dos EUA e as autoridades russas”, comentou Miguel Sousa Tavares na SIC.
Foi ontem o “último adeus” a Guilherme Pinto, como escreve o Público. Hoje será o de Manuel Serrão, “um militante da fé cristã”, escreve o Valdemar Cruz: “Vivia com paixão os temas relacionados com os ensinamentos da Igreja, ao ponto de se deixar, por vezes, tomar por uma ortodoxia por ele interpretada tão só como firmeza na defesa de princípios sagrados”.
FRASES “Temos de alimentar a Caixa com patriotismo e abnegação. Raio de pátria.” Francisco José Viegas, no Correio da Manhã.
“Precisamos de trabalhar muito afincadamente na melhoria dos ratings da nossa economia e é o grande desafio que temos pela frente”, Mário Centeno à Reuters (citado pelo Eco).
“O mais provável é que Portugal esteja na periferia dos populismos por muito tempo.” Nuno Garoupa, no DN.
"Com a Democracia, conseguimos um acesso universal à Saúde e à Educação, mas não à Justiça", Luís Pita Ameixa, no DN.
O QUE EU ANDO A LER Ficou (mais) conhecido pela “modernidade líquida”, um conceito sobre a desagregação das relações sociais e o vazio das relações humanas dos tempos que vivemos. A teoria, que tem muitos apoiantes e alguns críticos, é um desenho assustadoramente tranquilo de como nos damos uns com os outros na era da vida virtual, nomeadamente através das redes sociais. Damo-nos quase nada com muitos, muitos de quem recebemos quase nada.
O autor desta teoria é o polaco Zygmund Bauman, considerado um dos pensadores mais influentes do século XX. Morreu ontem.
A Ana Batista escreve aqui um detalhado percurso de Bauman, explicando que, na “modernidade líquida”, as relações “são cada vez menos duradouras e frequentes e existe uma fluidez do tempo e da identidade que faz com que as relações entre indivíduos seja fraca, tornando mais fáceis as separações”.
Pode ler uma entrevista de Bauman ao El Pais realizada há um ano, quando acabava de completar 90 anos, e em que o sociólogo e filósofo escreve que “as redes sociais são uma mentira”. Mas pode ler também como ele critica a precariedade instalada, que fez como que “o conflito já não seja entre classes, mas de cada um com a sociedade”.
O assunto é sério e é contemporâneo: nosso. Bauman tem uma vasta obra publicada e resumi-lo em meia dúzia de frases sonantes é muito redutor. Ele estudou temas como a fluidez da identidade, mas também o Holocausto, o consumismo e a globalização – e a ética. O filósofo foi lido por muitos pensadores, que o seguiram ou criticaram. Por exemplo, pode aprender muito sobre este conceito de “modernidade líquida” ouvindo esta excelente palestra do brasileiro Leandro Kamal. Dura quase hora e meia mas, garanto-lhe, vale a pena.
Bauman era um pessimista. “Três décadas de orgia consumista resultaram numa sensação de urgência sem fim”, afirmou noutra entrevista. “Ninguém está a controlar. Essa é a maior fonte do medo contemporâneo”, disse. “O que pensávamos ser o futuro está em dívida connosco. Para superar a crise, temos de ‘voltar ao passado’, a um modo de vida imprudentemente abandonado”.
Além de “Modernidade Líquida”, pode ler “Confiança e Medo na Cidade” ou “A Arte da Vida”. Muitos destes livros estão integralmente disponíveis na Internet. Bem como muitas entrevistas e palestras suas.
Ler, ler, ler, ler, ver, ver, ver, ver, pensar, pensar, pensar.
Está frio e mais frio vai ficar no fim de semana. Saia de casa ainda assim, ou do trabalho, ou da universidade, e vá para a rua. Hoje é dia de dizermos adeus a Mário Soares e olá ao que em nós é rasto dele. Como ele desejou: “… um rasto afetivo, estimulante, suave”. |
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