Numa semana em que, em Portugal, o debate público em torno do já chamado
“Imposto Mariana Mortágua” e das declarações da deputada bloquista numa
conferência do PS domino as atenções, lá fora chegam-nos notícias de
que, afinal, as hipóteses de Donald Trump acabar por ser eleito
presidente dos Estados Unidos não são tão remotas como isso. Por
estranho que possa parecer, o eco que vai tendo o discurso da nossa
esquerda radical e, nos Estados Unidos, o sucesso de um candidato que há
muito deveria ter desaparecido dos radares têm um ponto comum: ambos
medram num terreno adubado pelo desconforto criado pelo globalização no
mundo desenvolvido. Vítor Matos, num excelente trabalho –
Como quer Mariana Mortágua mudar o capitalismo?
– recordou-nos as raízes do partido, e a sua natureza anti-capitalista e
contrária ao comércio livre, mas não é por aqui que seguiremos hoje,
pois este tema já ocupou duas destas newsletters esta semana. Vamos
antes ver o que se passa nos Estados Unidos e trocar algumas ideias
sobre como a globalização não é uma causa perdida.
Como vamos de Trump?
Comecemos por Trump, que as sondagens voltaram a ressuscitar depois de
parecer batido em Agosto após uma sucessão de declarações desastrosas.
Como já aqui referi, o site indispensável para seguir a evolução das
sondagens nos Estados Unidos é o
FiveThirtyEight, de Nate Silver. Nele um dos quadros a merecer mais atenção é aquele onde se anota a
evolução das hipóteses que cada um dos candidatos tem de ganhar a eleição.
Hoje Trump tinha 38,9% de ganhar, um valor que ainda há algumas semanas
mal passava dos 20%. Olhando para todos os números que vai reunindo,
Nate Silver – famoso por ter feito as previsões mais exactas nas mais
recentes eleições americanas – escrevia cautelosamente:
Clinton’s Leading In Exactly The States She Needs To Win - Here’s why that isn’t as good as it sounds. Um texto que concluía assim:
Between the unusual nature of Trump’s electoral appeal, the disagreements between pollsters,
the large number of undecided and third-party voters, and the wider
range of swing states than in 2008 or 2012, this is not a year to expect
tremendous precision. Instead, the actual map is likely to be a little
messier than polling averages indicate, with the probability of modest
errors in either direction. For the time being, Clinton is more likely
to be hurt by those errors than to be helped by them. She has one really
good Electoral College path, but it’s only one path, instead of the robust electoral map
that President Obama had in 2008 and 2012. That’s why our models
estimate that Trump is more likely to benefit from an Electoral
College-popular vote split than Clinton is, although either outcome is
possible.
(Há mais sites onde se agregam as sondagens que vão saindo, sendo também recomendável consultar o do
Real Clear Politics, muito complete e também com muita informação estado a estado.)
Deixando os números e as previsões e passando à análise, deixem-me
destacar o texto de Michael Tomasky na New York Review of Books,
Can the Unthinkable Happen?
Trata-se de uma análise sobre a forma como a campanha tem vindo a ser
coberta pelos órgãos de informação, e ao mesmo tempo uma confissão de
alguma incredibilidade com o que está a acontecer. Mesmo assim, sublinha
o autor, “
One can acknowledge Clinton’s flaws and add some. Still,
this election is barely even about her. It’s about whether the people
and forces that exist to protect the United States from precisely what
is happening now will rise to the occasion and do so.”
Escrevendo a partir de um ponto de observação muito diferente (a
Polónia), a jornalista e historiadora Anne Applebaum tem um texto muito
interessante no Washington Post:
In Poland, a preview of what Trump could do to America.
O que ela nos descreve é como é perigosa e, ao mesmo tempo, insidiosa a
política baseada na exploração de teorias conspirativas – teorias que
no passado alimentaram grandes perseguições, como as que incitavam ao
antissemitismo ao dar crédito aos famosos
Protocolos dos Sábios de Sião.
Em Varsóvia o partido no poder, liderado pelo gémeo Kaczynski que
sobreviveu ao acidente de Smolensk em 2010, tem explorado fobias
conspirativas como forma de promover a sua agenda populista, e Trump
padece de idêntica tendência, como bem mostrou a forma como manteve
“dúvidas” sobre o local de nascença do Presidente Obama.
No entanto o candidato republicano parece poder dizer não importa o quê
sem que isso o penalize junto de muitos eleitores. É por isso bem
interessante ler o apanhado da alemã Der Spiegel,
Lies and Lapses on the US Campaign Trail. A revista não tem dúvidas: “
Donald
Trump is a proven liar. But Hillary Clinton is a flawed candidate as
well. With eight weeks to go until Americans go to the polls, the
prospect of a notorious charlatan moving into the White House is looking
more realistic than ever.”
Comércio livre, globalização e populismo
Já várias vezes temos referido que muito do populismo que tem vindo a
erodir o centro político se alimenta, nos países desenvolvidos, de um
sentimento de orfandade e de expectativas goradas face às consequências
da globalização e do comércio livre. Isso é especialmente verdade nos
Estados Unidos com a onda popular de apoio a Trump nas regiões
desindustrializadas, como foi verdade quando procurámos perceber quem
votou pelo Brexit no Reino Unido. E da mesma forma é verdade quando
vemos os socialistas europeus (
com os franceses e os alemães à cabeça)
a tratarem de acabar com as negociações do TTIP, isto é, do tratado de
comércio lívre entre a União Europeia e os Estados Unidos em que a
administração Obama se tem vindo a empenhar apesar da oposição dos
isolacionistas no Congresso.
É neste quadro que recomendo a leitura do dossier especial do Financial Times de hoje,
Free trade v populism: The fight for America’s economy, um texto onde se desenvolve a ideia de que “
The presidential campaign’s protectionist rhetoric is threatening global commerce”.
É um texto onde se faz um apanhado da evolução do comércio livre nas
últimas décadas e se expõe qual o ponto da situação das negociações de
novos tratados que permitam abrir ainda mais os mercados. Nota-se que,
apesar dos sucessos dos populistas, “
the “globalists” — as Mr Trump dubs them — are fighting back. For all its failings, they argue, globalisation has been good for the world economy, lifting a billion people out of poverty in the developing world and helping to increase living standards in rich economies.”
Um dos gráficos que acompanha o artigo compara a evolução do volume das
exportações a nível global com a da riqueza total produzida. A
cronologia que o acompanha, e que reproduzimos a seguir, mostra que tudo
começou com os acordos de Bretton Woods, em 1944, orquestrados por
Keynes (que Mariana Mortágua curiosamente elogiou
na sua intervenção do passado fim-de-semana, uma intervenção que este gráfico contradiz radicalmente):
1 1944 More than 700 delegates from 44
countries gather at the Mount Washington Hotel in Bretton Woods, New
Hampshire, to hash out the terms of a postwar economic order
2 1948 The General
Agreement on Tariffs and Trade takes effect, lowering more than 45,000
tariffs. It remains the basis of global trade rules
3 1957 The Treaty of Rome creates the
European Economic Community, which eventually forms the basis of the
world’s largest free trade zone
4 1986-94 Uruguay Round leads to the creation of the World Trade Organisation
5 1994 North American Free Trade Agreement comes into force
6 1999 Anti-globalisation protests break out at the WTO’s ministerial meeting in Seattle
7 2001 China joins the World Trade Organisation
8 2008-09 Global financial crisis leads to the biggest collapse in world trade since the 1930s
9 2011 “Occupy” protests break out in the US and other countries
10 2013 US-EU negotiations over a
Transatlantic Trade and Investment Partnership launched. They quickly
draw fierce opposition in Europe
11 2015 The US, Japan and 10 other
countries conclude talks over a Trans-Pacific Partnership. It is opposed
by Republican Donald Trump and Democrat Hillary Clinton, who hailed it
as a “gold standard” for trade agreements while serving as secretary of
state
Como não quero estender-me muito mais por hoje, acrescento apenas mais
uma referência também muito a propósito, o texto de Hernando de Soto
para o Project Syndicate
Globalization for Everyone. Este economista peruano – e não é um detalhe ser alguém da América Latina – sublinha naturalmente que a globalização “
liberated billions of developing-country citizens from poverty”
mesmo sendo certo que não tivesse evitado que o mundo continuasse a ser
um lugar muito desigual. Mas para ajudar a melhorá-lo é preciso, na sua
opinião, prosseguir o esforço de aproximar as regras seguidas em todos
os mercados, em especial as que protegem os direitos de propriedade nos
países onde as instituições são mais fracas. O seu artigo faz algumas
sugestões sobre como se pode trabalhar para o conseguir.
Há, contudo, um longo caminho a percorrer, e neste momento o foco de um
número crescente de pessoas é que não se descarrila apenas porque o
eleitorado do país mais poderoso do mundo parece estar a caminhar como o
sonâmbulo enfeitiçado por um discurso tremendamente enganador (como o
que é feito, por exemplo, na campanha americana aos mineiros, um
discurso que William A. Galston desmonta de forma magistral no Wall
Street Journal em
Hard Truths for Trump’s America: Washington didn’t kill coal, but disaffected voters are being sold a story of victimhood).
Por hoje, e por esta semana, é tudo. Procurem descansar (e ler) neste
que também é o primeiro fim-de-semana de Outono. A seis semanas dos
Americanos irem às urnas e na véspera dos muito aguardados debates
Hillary-Trump, o primeiro dos quais está marcado para a próxima
segunda-feira.