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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!


Numa semana em que, em Portugal, o debate público em torno do já chamado “Imposto Mariana Mortágua” e das declarações da deputada bloquista numa conferência do PS domino as atenções, lá fora chegam-nos notícias de que, afinal, as hipóteses de Donald Trump acabar por ser eleito presidente dos Estados Unidos não são tão remotas como isso. Por estranho que possa parecer, o eco que vai tendo o discurso da nossa esquerda radical e, nos Estados Unidos, o sucesso de um candidato que há muito deveria ter desaparecido dos radares têm um ponto comum: ambos medram num terreno adubado pelo desconforto criado pelo globalização no mundo desenvolvido. Vítor Matos, num excelente trabalho – Como quer Mariana Mortágua mudar o capitalismo? – recordou-nos as raízes do partido, e a sua natureza anti-capitalista e contrária ao comércio livre, mas não é por aqui que seguiremos hoje, pois este tema já ocupou duas destas newsletters esta semana. Vamos antes ver o que se passa nos Estados Unidos e trocar algumas ideias sobre como a globalização não é uma causa perdida.

Como vamos de Trump?

Comecemos por Trump, que as sondagens voltaram a ressuscitar depois de parecer batido em Agosto após uma sucessão de declarações desastrosas. Como já aqui referi, o site indispensável para seguir a evolução das sondagens nos Estados Unidos é o FiveThirtyEight, de Nate Silver. Nele um dos quadros a merecer mais atenção é aquele onde se anota a evolução das hipóteses que cada um dos candidatos tem de ganhar a eleição. Hoje Trump tinha 38,9% de ganhar, um valor que ainda há algumas semanas mal passava dos 20%. Olhando para todos os números que vai reunindo, Nate Silver – famoso por ter feito as previsões mais exactas nas mais recentes eleições americanas – escrevia cautelosamente: Clinton’s Leading In Exactly The States She Needs To Win - Here’s why that isn’t as good as it sounds. Um texto que concluía assim:
Between the unusual nature of Trump’s electoral appeal, the disagreements between pollsters, the large number of undecided and third-party voters, and the wider range of swing states than in 2008 or 2012, this is not a year to expect tremendous precision. Instead, the actual map is likely to be a little messier than polling averages indicate, with the probability of modest errors in either direction. For the time being, Clinton is more likely to be hurt by those errors than to be helped by them. She has one really good Electoral College path, but it’s only one path, instead of the robust electoral map that President Obama had in 2008 and 2012. That’s why our models estimate that Trump is more likely to benefit from an Electoral College-popular vote split than Clinton is, although either outcome is possible.

(Há mais sites onde se agregam as sondagens que vão saindo, sendo também recomendável consultar o do Real Clear Politics, muito complete e também com muita informação estado a estado.)

Deixando os números e as previsões e passando à análise, deixem-me destacar o texto de Michael Tomasky na New York Review of Books, Can the Unthinkable Happen? Trata-se de uma análise sobre a forma como a campanha tem vindo a ser coberta pelos órgãos de informação, e ao mesmo tempo uma confissão de alguma incredibilidade com o que está a acontecer. Mesmo assim, sublinha o autor, “One can acknowledge Clinton’s flaws and add some. Still, this election is barely even about her. It’s about whether the people and forces that exist to protect the United States from precisely what is happening now will rise to the occasion and do so.

Escrevendo a partir de um ponto de observação muito diferente (a Polónia), a jornalista e historiadora Anne Applebaum tem um texto muito interessante no Washington Post: In Poland, a preview of what Trump could do to America. O que ela nos descreve é como é perigosa e, ao mesmo tempo, insidiosa a política baseada na exploração de teorias conspirativas – teorias que no passado alimentaram grandes perseguições, como as que incitavam ao antissemitismo ao dar crédito aos famosos Protocolos dos Sábios de Sião. Em Varsóvia o partido no poder, liderado pelo gémeo Kaczynski que sobreviveu ao acidente de Smolensk em 2010, tem explorado fobias conspirativas como forma de promover a sua agenda populista, e Trump padece de idêntica tendência, como bem mostrou a forma como manteve “dúvidas” sobre o local de nascença do Presidente Obama.

No entanto o candidato republicano parece poder dizer não importa o quê sem que isso o penalize junto de muitos eleitores. É por isso bem interessante ler o apanhado da alemã Der Spiegel, Lies and Lapses on the US Campaign Trail. A revista não tem dúvidas: “Donald Trump is a proven liar. But Hillary Clinton is a flawed candidate as well. With eight weeks to go until Americans go to the polls, the prospect of a notorious charlatan moving into the White House is looking more realistic than ever.

Comércio livre, globalização e populismo

Já várias vezes temos referido que muito do populismo que tem vindo a erodir o centro político se alimenta, nos países desenvolvidos, de um sentimento de orfandade e de expectativas goradas face às consequências da globalização e do comércio livre. Isso é especialmente verdade nos Estados Unidos com a onda popular de apoio a Trump nas regiões desindustrializadas, como foi verdade quando procurámos perceber quem votou pelo Brexit no Reino Unido. E da mesma forma é verdade quando vemos os socialistas europeus (com os franceses e os alemães à cabeça) a tratarem de acabar com as negociações do TTIP, isto é, do tratado de comércio lívre entre a União Europeia e os Estados Unidos em que a administração Obama se tem vindo a empenhar apesar da oposição dos isolacionistas no Congresso.

É neste quadro que recomendo a leitura do dossier especial do Financial Times de hoje, Free trade v populism: The fight for America’s economy, um texto onde se desenvolve a ideia de que “The presidential campaign’s protectionist rhetoric is threatening global commerce”. É um texto onde se faz um apanhado da evolução do comércio livre nas últimas décadas e se expõe qual o ponto da situação das negociações de novos tratados que permitam abrir ainda mais os mercados. Nota-se que, apesar dos sucessos dos populistas, “the “globalists” — as Mr Trump dubs them — are fighting back. For all its failings, they argue, globalisation has been good for the world economy, lifting a billion people out of poverty in the developing world and helping to increase living standards in rich economies.” Um dos gráficos que acompanha o artigo compara a evolução do volume das exportações a nível global com a da riqueza total produzida. A cronologia que o acompanha, e que reproduzimos a seguir, mostra que tudo começou com os acordos de Bretton Woods, em 1944, orquestrados por Keynes (que Mariana Mortágua curiosamente elogiou na sua intervenção do passado fim-de-semana, uma intervenção que este gráfico contradiz radicalmente):


1 1944 More than 700 delegates from 44 countries gather at the Mount Washington Hotel in Bretton Woods, New Hampshire, to hash out the terms of a postwar economic order
2 1948 The General Agreement on Tariffs and Trade takes effect, lowering more than 45,000 tariffs. It remains the basis of global trade rules
3 1957 The Treaty of Rome creates the European Economic Community, which eventually forms the basis of the world’s largest free trade zone
4 1986-94 Uruguay Round leads to the creation of the World Trade Organisation
5 1994 North American Free Trade Agreement comes into force
6 1999 Anti-globalisation protests break out at the WTO’s ministerial meeting in Seattle
7 2001 China joins the World Trade Organisation
8 2008-09 Global financial crisis leads to the biggest collapse in world trade since the 1930s
9 2011 “Occupy” protests break out in the US and other countries
10 2013 US-EU negotiations over a Transatlantic Trade and Investment Partnership launched. They quickly draw fierce opposition in Europe
11 2015 The US, Japan and 10 other countries conclude talks over a Trans-Pacific Partnership. It is opposed by Republican Donald Trump and Democrat Hillary Clinton, who hailed it as a “gold standard” for trade agreements while serving as secretary of state

Como não quero estender-me muito mais por hoje, acrescento apenas mais uma referência também muito a propósito, o texto de Hernando de Soto para o Project Syndicate Globalization for Everyone. Este economista peruano – e não é um detalhe ser alguém da América Latina – sublinha naturalmente que a globalização “liberated billions of developing-country citizens from poverty” mesmo sendo certo que não tivesse evitado que o mundo continuasse a ser um lugar muito desigual. Mas para ajudar a melhorá-lo é preciso, na sua opinião, prosseguir o esforço de aproximar as regras seguidas em todos os mercados, em especial as que protegem os direitos de propriedade nos países onde as instituições são mais fracas. O seu artigo faz algumas sugestões sobre como se pode trabalhar para o conseguir.

Há, contudo, um longo caminho a percorrer, e neste momento o foco de um número crescente de pessoas é que não se descarrila apenas porque o eleitorado do país mais poderoso do mundo parece estar a caminhar como o sonâmbulo enfeitiçado por um discurso tremendamente enganador (como o que é feito, por exemplo, na campanha americana aos mineiros, um discurso que William A. Galston desmonta de forma magistral no Wall Street Journal em Hard Truths for Trump’s America: Washington didn’t kill coal, but disaffected voters are being sold a story of victimhood).

Por hoje, e por esta semana, é tudo. Procurem descansar (e ler) neste que também é o primeiro fim-de-semana de Outono. A seis semanas dos Americanos irem às urnas e na véspera dos muito aguardados debates Hillary-Trump, o primeiro dos quais está marcado para a próxima segunda-feira.

 
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