A SOBRETAXA DO IRS E O ESPLENDOR DA ÉTICA
(Nicolau Santos, in Expresso, 21/11/2015)
Anda muita gente indignada com o líder do PS, António Costa, por não ter dito que, se a direita não tivesse maioria, se aliaria aos partidos à sua esquerda para governar. O primeiro-ministro em gestão, Pedro Passos Coelho, qualifica a situação como “fraude” e “golpe”. E há quem insista na tecla da quebra de tradições com 40 anos (governa quem ganha e o presidente da Assembleia da República é do partido que ganhou).
A coligação abusou da mensagem de que iria devolver grande parte da sobretaxa de 3,5% sobre o IRS em 2016. Agora é 0%
Quanto às tradições, estamos conversados: também os cidadãos consideravam o Estado uma pessoa de bem, respeitadora dos contratos que subscreve, e nos últimos quatro anos eles foram todos quebrados com total desprezo e indiferença para com a parte mais fraca: reformados e pensionistas, funcionários, utentes de serviços públicos na saúde, educação, transportes, etc. E já agora, devem as tradições prevalecer sobre as regras democráticas? É que as tais tradições estão a ser postas em causa pelos representantes do povo, eleitos livremente, na Assembleia da República, o coração das democracias. O que quer dizer que estão a nascer novas tradições — e a mais importante é que, a partir de agora, só dificilmente haverá governos que não sejam suportados em maiorias absolutas. Estamos todos avisados.
Dito isto, António Costa escondeu dos portugueses o que poderia fazer? Remeto os leitores para a manchete do Expresso de 26 de setembro de 2015, oito dias antes das eleições: “Costa chumba governo de direita minoritário”. E por baixo: “PS pensa que será governo se não houver maioria PSD/CDS. Costa confia na maioria de esquerda e na capacidade para fazer acordos”. Ora o Expresso não é propriamente um jornal de vão de escada, cujas manchetes passem despercebidas. Aliás, há indícios de que na coligação Portugal à Frente houve quem pedisse a Passos para interromper a campanha e fazer uma comunicação ao país, interpelando Costa sobre estas declarações. Mas Passos entendeu não o fazer.
Mas por falar em ética... É verdade ou não que o Governo PSD/CDS usou e abusou da mensagem de que iria devolver grande parte da sobretaxa de 3,5% sobre o IRS logo em 2016 — e que esse valor subia todos os meses, chegando aos 35% em setembro, havendo mesmo quem aventasse que poderia atingir os 50%? E é verdade ou não que essa mensagem pode ter atraído votantes para a coligação? Pois bem, logo a seguir às eleições o valor a devolver caiu para 9% e sabe-se agora que em outubro a devolução fica em 0%! Para esta evolução não terá sido despiciendo o atraso propositado dos reembolsos do IRS para obter resultados mais favoráveis na pretensa devolução da sobretaxa antes das eleições. Ora a pergunta que se coloca é: não se tratou isto de uma fraude para enganar os eleitores e ganhar votos? E o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais fez isto por sua exclusiva iniciativa? A ministra das Finanças não sabia de nada? O primeiro-ministro também não? E se isto não é falta de ética, então o que é a ética?