Francisco Franco morreu a 20 de Novembro de 1975. Ou seja, há exactamente 40 anos. Nas quatro décadas anteriores, primeiro como comandante do exército nacionalista durante a Guerra Civil, depois como Chefe de Estado, o “caudilho” que dirigiu com mão de ferro, e não raras vezes com enorme brutalidade, uma Espanha que, tanto tempo passado, ainda não ajustou correctamente as contas com a sua memória. Por isso, apesar de esta semana ter sido dominada por temas ligados à ameaça terrorista e pela nossa crise política doméstica, o Macroscópio afasta-se hoje destes temas para falar um pouco de Franco, da sua Espanha, da sua longa sombra.
Antes de ir à imprensa espanhola, que naturalmente foi a que deu mais atenção a este aniversário, vou começar pela BBC porque esta contou com a colaboração de um dos historidores melhor habilitados para nos falar deste período: Paul Preston. Em
Spain feels Franco's legacy 40 years after his death podemos encontrar uma breve reflexão sobre a forma como a sua memória ainda pesa no presente de Espanha, até porque morreu no poder e na cama, tendo a sua morte aberto caminho a uma transição pacífica para a democracia toda ela feita de compromissos: “
Scarred by the horrors of the civil war and the post-war repression, during the transition to democracy Spaniards rejected both political violence and Franco's idea that, by right of conquest, one half of the country could rule over the other.”
Esta ideia – a de que uma parte do país, seja ela qual for, não pode impor a sua vontade à outra metade – é especialmente importante pois falamos de um país que, historicamente, pelo menos desde o século XIX, sempre esteve partido em dois. As “duas Espanhas”, tantas vezes referidas pelos estudiosos, não foram nem são uma ficção, pois existiram e existem, e talvez por isso a sombra de Franco ainda pese sobre os nossos vizinhos. Mas há mais, de acordo com
Preston: “
Today, along with the still open wounds of the civil war and the repression, two other shadows of the dictatorship hang over Spain - corruption and regional division.” As divisões regionais, hoje com fortíssima expressão no País Basco e na Catalunha, são em parte herança do seu férreo centralismo. A corrupção, por outro lado, também é o reflexo de uma cultura a que nem Franco escapava: “
Recent research has uncovered proof of how he used his power to enrich himself and his family. In general, the idea that public service exists for private benefit is one of the principal legacies of his regime.”
Fernando Martins, também ele um especialista em história espanhola, professor na Universidade de Évora, escreveu para o Observador um ensaio –
Quando a Espanha tinha um caudilho: Francisco Franco, 40 anos depois – onde sublinha a profunda divisão da sociedade espanhola e forma como ela se agravou nos meses que antecederam o pronunciamento militar contra o governo republicano de Frente Popular. O próprio Franco não esteve entre os primeiros conspiradores, acabando por se tornar um dos seus líderes depois do assassinato do deputado conservador Calvo Sotelo. Antes tinha procurado contemporizar. Depois, “
A partir de 14 de Julho, Franco compreendeu que os seus intuitos contemporizadores estavam condenados ao fracasso porque o Governo não só se mostrava incapaz de restaurar e manter qualquer princípio elementar de ordem, como colaborava activamente na supressão da legalidade. As portas que manteve entreabertas com a conspiração militar em marcha escancararam-se apenas na sequência da morte do deputado galego.”
Mas se isto é história, e em especial história da Guerra Civil, do ensaio de Fernando Martins resulta sobretudo que “
a longevidade do franquismo contribuiu para fechar velhas feridas que remontavam às décadas de 1930 e 1940. É verdade que a longevidade abriu novos focos, e muito graves, de conflitualidade política. No entanto, depois de 1975 os espanhóis não repetiram muitos dos erros do passado porque a passagem tempo ajudara a perceber, às “duas Espanhas”, que o preço a pagar por um regresso ao passado seria demasiado elevado.”
Mas vamos à imprensa espanhola, onde existem alguns trabalhos importantes. O mais completo que encontrei foi o do El Pais, apresentado num formato
multimédia muito completo e que se divide em vários capítulos, até porque também aborda as mudanças por que Espanha passou nestas últimas quatro décadas:
40 AÑOS;
VOCES;
FRANCO;
LOS REYES;
PROTAGONISTAS;
23F;
ETA;
11M;
ECONOMÍA;
PROGRESO;
ARTES e
DEPORTES. Algumas referências do muito que nos é oferecido neste enorme dossier:
- Lo que queda del franquismo, uma reportagem que nos leva até um edifício “A 400 metros del Santiago Bernabéu, en un barrio privilegiado de Madrid, perviven siete habitaciones repletas de bustos del dictador y recuerdos del régimen. Es la Fundación Francisco Franco”.
- La libertad, ¿qué libertad?, um texto de opinião de Victoria Camps, catedrática emérita de Filosofía de Universidade Autónoma de Barcelona, onde se defende que “Hay libertad, pero falta criterio y voluntad para utilizarla responsablemente a muchos niveles. Gozar de más libertades debiera implicar ser más responsable de lo que se hace. Pero no suele ser así. La política y la ética se han judicializado, lo que significa que, mientras no haya un tribunal que lo sentencie, nadie se siente responsable de nada.”
- Después de Franco, ¿qué?, de novo um texto de opinião, agora do historiador Santos Juliá que recorda que “fueron un exfascista como Ridruejo y un comunista como Carrillo, ambos muy jóvenes cuando la guerra, ambos con militancia en partidos que han merecido con razón ser calificados como religiones políticas por la carga de fe, entusiasmo y creencia en paraísos terrenales que requería la militancia en ellos, los que concibieron y pusieron por escrito que la única salida para el después de Franco consistiría en un proceso, no una revolución, tampoco un acto de fuerza, ni un acontecimiento llamado algún día a celebrarse, sino un proceso de transición que comenzaría con la recuperación de sus libertades por el pueblo español”. Foi isso mesmo que acabou por acontecer.
- Los debates constitucionales, um conjunto de quatro textos de José Manuel Romero e Vera Gutiérrez Calvo: Hacer España o deshacerla; Monárquicos de ‘aquí y ahora’; España aconfesional y católica e El enigma de las ‘nacionalidades’.
- Enganchados al consumismo, onde se recorda que “En los años 70 el gasto familiar se dedicaba mayoritariamente a la alimentación en una paupérrima España en la que solo había un producto para cada necesidad. Pero con la llegada al empleo de los “baby boomers” y el nacimiento de los centros comerciales y las grandes cadenas de moda, los españoles abrazaron el consumismo.”
E não insisto mais, pois o interessante é “navegar” por todas estas páginas e artigos que nos dão uma visão da velha e da nova Espanha, por vezes com fórmulas gráficas originais, criativas e muito apelativas.
Para todos os que tiverem ainda mais curiosidade sobre Espanha, então podem seguir outro guia, preparado pelo El Mundo:
Los libros del 20-N: 20 obras sobre Franco. Como se explica logo a abrir, “
Hay un libro de Franco para cada lector: minuciosos, acusador, exculpatorios, anecdóticos, divulgativos...”, e a lista que nos é proposta é verdadeiramente plural pelo que eu próprio conheço de alguns dos e autores. Mesmo assim, para quem quiser apenas um livro, arrisco partilhar a que seria a minha escolha, que também é o livro que o El Mundo apresenta em primeiro lugar: “
Franco, una biografía personal y política (Espasa) de Stanley Payne y Jesús Palacios. Trabajo que quiere ser equilibrado y objetivo, evitando tanto la apología como la mera denuncia, destaca los logros sociales (protección familiar, educación...) y políticos del franquismo. Franco aparece como dictador y modernizador definitvo de España. Los autores han explorado el archivo de la Fundación Francisco Franco y mantenido las únicas entrevistas extensivas que ha concedido la hija de Franco.” O conservador (e monárquico) ABC apenas sugere um livro, em
El franquismo 40 años después. É uma obra na qual “
ocho historiadores y un escritor diseccionan la larga trayectoria del franquismo. Un balance global del régimen y su figura máxima.” O livro, coordenado por Julián Casanova, chama-se simplesmente «Cuarenta años con Franco».
Exatamente: 40 anos e um legado que divide, como se percebe pela lista de obras seleccionadas pelo El Mundo, uma memória que continua a enfurecer uns e a suscitar a admiração de outros (poucos), como se relata nesta notícia do Telegraph:
Fury in Spain over tributes on anniversary of Franco’s death. Mas para compreender isso é necessário ir a antes de Franco, às “duas Espanhas” e à forma como a radicalização política dos anos que antecederam a Guerra Civil levaram à catástrofe. Ainda hoje, em Espanha, o centro político quase não existe, o que torna muitas vezes demasiado virulento o debate político e o confronto de posições. Portugal, mesmo tendo conhecido uma história com muitos paralelismos, teve em democracia uma experiência bem diferente. Pelo menos até agora.
Deixo-vos sem saber o que todos querem saber – quando e como vai decidir o Presidente – e consciente de que a semana que acabamos de viver na Europa vai mudar muito nas nossas vidas. Temas que, estou certo, estarão de regresso ao Macroscópio na próxima semana.
Até lá, neste fim-de-semana que se anuncia de muito frio, aproveite para descansar e, também, para ler. Reencontramo-nos segunda-feira.