MILITAR DA GNR CONDENADO À CALHOADA.
No dia 11 de Agosto de 2008, pelas 17H20, Hugo Ernano (HE)
encontrava-se de patrulha na localidade de Santo Antão do Tojal, comarca
de Loures, em viatura caracterizada da GNR quando foi comunicado, via
rádio, a existência de um assalto na Quinta do Maçapez, sita no Bairro
dos Lóios, Santo Antão do Tojal.
A utilização da expressão assalto
pressupõe a eventual existência de armas de fogo e, como tal, acarretam
uma abordagem policial mais cautelosa e prudente. E pressupõe,
igualmente, estar-se em presença de flagrante delito, conceito que
consubstancia todo o crime que se está a cometer ou se acabou de
cometer, reportando-se também como flagrante delito o caso em que o
agente for, logo após o crime perseguido por qualquer pessoa, ou
encontrado com objectos ou sinais que mostrem claramente que acabou de o
cometer ou de nele participar
O carro patrulha dirigiu-se para o local, onde encontrou uma carrinha Ford Transit suspeita.
HE que estava acompanhado de outros militares da GNR saiu do carro
patrulha, tendo-se colocado à frente deste. Levantou um dos braços em
sinal de paragem, enquanto que com o outro braço colocou a mão no coldre
da arma, numa clara indicação ao ocupante da carrinha de que se iria
iniciar uma abordagem policial.
O condutor da carrinha, suspeito da
prática de ilícitos criminais, encontrava-se no cimo de um caminho, com a
dianteira da carrinha apontada para o carro patrulha da GNR e tinha
três hipóteses possíveis:
a) Ou saía da viatura para que fosse possível a abordagem policial;
b) ou, não querendo ser abordado iniciava a marcha no sentido
descendente, e passava pelo carro patrulha, sem colocar os seus
ocupantes em perigo ;
c) Ou, a terceira possibilidade, a mais grave,
iniciava a marcha no sentido descendente, com velocidade desapropriada
para o local, passando pelo caminho mais próximo do carro patrulha da
GNR, pondo em perigo a vida e a integridade física dos agentes.
Optou pela terceira, isto é, acelerou e arrancou na direcção do carro
patrulha e do militar HE, o qual teve que recuar e projectar-se para
cima do capot do carro patrulha, para não ser atropelado pela carrinha.
O condutor da carrinha quis, pois, impedir a abordagem e detenção,
tendo optado, a todo o custo, por abandonar o local, nem que para isso
tivesse que por em perigo a vida daqueles agentes de autoridade ou de
quem se cruzasse pelo caminho.
Ainda assim, HE levantou-se de
imediato, entrou no carro patrulha, colocou-se no lugar do “pendura”,
ligou os sinais luminosos (rotativos) e sonoros (sirene) no nível de
intensidade mais elevado e comunicou à central a necessidade de
reforços, tendo-se dado início ao seguimento policial à viatura com os
suspeitos em fuga.
O condutor da carrinha desrespeitou todas as
normas de segurança rodoviária, conduzindo em velocidade excessiva,
“cortando” curvas e colocando-se sempre no meio das ruas estreitas e
apertadas, por vezes em condução em zigue-zague, com paragens bruscas,
por forma a impedir a ultrapassagem da viatura policial. Daqui resulta,
inequivocamente, que a carrinha em fuga foi, ela própria, uma arma
potencialmente causadora do dano morte e/ou lesões que poderiam pôr em
perigo a integridade física dos agentes de autoridade ou de quem
aparecesse naquele momento pela frente.
A certa altura, quando o
condutor da carrinha virou à direita, HE visualizou um indivíduo junto à
janela do lado direito, com o tronco ligeiramente colocado para a fora e
empunhando na mão direita um objecto metálico de cor escura na direcção
do carro patrulha. HE idealizou que tal se trataria de uma arma de
fogo.
Assim, HE decidiu efectuar disparos para a viatura no momento
em que constatou estar numa recta de 140 metros, com boa visibilidade.
Era de dia (17H30). A recta era delimitada por muros com cerca de dois
metros de altura dos dois lados, não existindo habitações. Não se
encontrava qualquer viatura estacionado na berma. Aliás, o uso da arma
de fogo foi o último recurso possível para impedir a fuga de um veículo
com suspeitos da prática de ilícitos criminais e, acima de tudo, para
evitar que a carrinha atingisse mortalmente algum dos transeuntes que HE
sabia encontrarem-se algumas centenas de metros mais à frente, pois a
patrulha tinha passado momentos antes por aquele local e constatara a
presença de muitos jovens e crianças, nas imediações do largo da Igreja
de São Julião do Tojal e junto à casa do Gaiato.
Quando decidiu usar
da arma de fogo fê-lo por ser a derradeira via para travar e impedir
uma tragédia maior. Em momento algum HE teve intenção de causar a morte a
qualquer um dos ocupantes da viatura em fuga. Se o quisesse certamente a
trajectória dos disparos não estariam um no pneu traseiro, outro no
guarda-lamas e outro ainda acima do manípulo da porta traseira da
carrinha.
Fica demonstrado que HE esgotou todos os patamares do uso
da força para impedir que o ocupante da carrinha fugisse e, durante o
trajecto, atropelasse mortalmente alguém que com ele se cruzasse. E nem
assim, a viatura parou.
Segundo o tribunal, o arguido não devia ter
feito os disparos por não ter formação específica. A aceitação de tal
argumento reconduz-se a uma questão que roça o ridículo - se os
militares da GNR não podem usar da arma, porque é que lhes é entregue
uma?
Ora, HE sabia que se não usasse a arma de fogo as
probabilidades de tal facto acontecer eram iminentes e reais e o modo de
condução e as características do veículo em fuga eram compatíveis a
causar sérias lesões ou mesmo a morte para terceiros.
Tal facto foi
confirmado pelos colegas de HE, que circulavam na viatura policial, e
até pelo Director da Casa do Gaiato, que afirmou, inclusive, em Tribunal
que no local estavam cerca de 50 jovens, para além dos rapazes que
habitam e estudam na casa do Gaiato e que costumavam permanecer nas
imediações da Igreja Matriz de Santo Antão do Tojal e da Casa do Gaiato.
HE estava apenas a fazer aquilo que jurou proteger e defender: a vida e
a integridade física da terceiros. E, para tal, não é exigido que
tenha, efectivamente, que morrer algum desses terceiros - em virtude da
actuação do condutor da carrinha em fuga - para legitimar o recurso à
arma.
Não foi esta a posição do tribunal, que condenou o militar da
Guarda Nacional Republicana, HE em 9 anos de pena de prisão, devido a
este seguimento policial efectuado por uma patrulha da GNR a uma
carrinha com suspeitos da prática de ilícitos criminais no seu interior,
do qual resultou a morte de um jovem, após um disparo do soldado HE.
A Portaria n.º 722/85, de 25 de Setembro - Regulamento Geral do Serviço
da Guarda Nacional Republicana (R.G.S.G.N.R.) estava em vigor à data
dos factos - 11 de Agosto de 2008. Refere, expressamente, o artigo 2º,
n.º 1: “Em todos os actos o militar da Guarda deve manifestar dotes de
caracter, espírito de obediência e de sacrifício e aptidão para bem
servir, que lhe permitam e capacitem para zelar activamente pelo
respeito das leis e pela protecção da população e da propriedade,
através do cumprimento das mais diversificadas missões policiais, de
trânsito, fiscais, de segurança e ordem pública, honoríficas, de
protecção e socorro e militares, que lhe impõem um desempenho contínuo e
empenhado”
O R.G.S.G.N.R define ainda, no seu artigo 155º, n.º 1 a
4, que “O serviço policial cumpre uma importante actividade no
desenvolvimento da missão do Guarda, principalmente nos seguintes
aspectos:
1- Velar pelo cumprimento das leis;
2- Garantir a manutenção da ordem pública;
3 - Manter e restabelecer a segurança dos cidadãos e da propriedade;
4 - Auxiliar e proteger os cidadãos.”
Dispõe ainda o artigo 156º do mesmo diploma: “A actuação dos militares
da Guarda no serviço policial deve orientar-se prioritariamente por uma
sistemática acção proactiva, de visibilidade e preventiva, de auxílio
das populações recorrendo-se a todos os meios legítimos de forma a
prevenir e a evitar a prática de ilícitos criminais ou
contra-ordenacionais.”.
No caso em apreço e como aqui ficou provado, o militar da GNR, Hugo Ernano agiu sempre em estrito cumprimento da Lei.
“Deixar ir embora” e limitar-se a confiar na sorte para ninguém ser
morto ou seriamente ferido, se aparecesse alguém à frente da carrinha em
fuga, não era opção nem para este militar, nem para todos aqueles que
querem continuar a acreditar que num Estado de Direito as forças
policiais servem para proteger os cidadãos, isto é, quem trabalha e
produz riqueza, e não quem apenas consome e «rouba».
O militar HE
repeliu uma agressão iminente ou em execução, em defesa própria ou de
terceiros, após esgotados todos os outros meios possíveis para o
conseguir.
O uso da arma por parte do militar HE foi necessário, proporcional e necessário para fazer cessar o perigo iminente e real.
Não é exigido ao agente de autoridade que espere pelo resultado (morte
ou lesão de um terceiro) para só depois agir. Aceitar tal pressuposto é
denegar a existência da função das forças de autoridade.
Se o
condutor teve a coragem de avançar contra o agente de autoridade mais
depressa o faria se alguém, indefeso, aparecesse à sua frente.
Curiosamente, ou nem tanto, o tribunal negou-se a efectuar a
reconstituição dos factos, com a desculpa esfarrapada de que tal
diligência não se afigurava pertinente. E o tribunal devia saber da
importância de uma «reconstituição» e de como este caso se enquadra
nesse pressuposto. Se sabia, é mais grave. Não admira, pois, que o
tribunal também não tenha efectuado a inspecção ao local, para avaliar
in loco onde decorreram os factos e perceber aquilo que não terá
percebido.
E não percebeu que:
1. no interior da viatura foram
localizados e apreendidos pela 54 extensores que haviam sido furtados
pelos ocupantes da carrinha.
2. havia no chão, entre as costas do
banco do condutor e a divisória do habitáculo para a caixa de carga, uma
pistola semi-automática de calibre 6,35 mm Browning, de marca
“Manufrance”, modelo “Le Français”, número de série oculto, de origem
francesa, munida de carregador, com o comprimento aproximado de 115 mm,
em boas condições de funcionamento.
3. no interior do porta - luvas da viatura, estavam cinco cartuchos de caça, calibre 12, todos em bom estado de utilização.
4. HE estava ao serviço da GNR e devidamente uniformizado, deslocava-se
com os camaradas no carro patrulha caracterizado e deu ordem de paragem
ao condutor da carrinha no seguimento de uma solicitação de ocorrência
de assalto em curso.
5. o condutor da carrinha não acatou a ordem de paragem e iniciou a marcha na direcção do militar HE.
6. HE só não foi atropelado porque recuou e se projectou para cima do capot do carro patrulha.
7. logo após o início do seguimento o arguido ligou os sinais
luminosos(rotativos ou “pirilampos”) e sonoros (sirene) na intensidade
máxima por forma a advertir terceiros do perigo de veículo em marcha
urgente e o condutor da viatura em fuga que estava perante elementos de
autoridade e que teria que parar.
8. em momento algum o condutor da
carrinha parou, tendo conduzido durante cerca de 2 minutos, numa
distância de 900 metros, entre ruas estreitas, em velocidade excessiva
para o local, circulando no meio da estrada, ocupando as duas faixas de
rodagem e “cortando” as curvas a direito, desrespeitando todas as regras
de segurança rodoviária, colocando em perigo a sua própria vida e a
integridade física e dos ocupantes da viatura, dos ocupantes do carro
patrulha e terceiros que cruzassem no caminho.
9. em momento algum -
nem depois do arguido comunicar, através do megafone, avisar que iria
fazer uso da arma de fogo e ter efectuado dois tiros de advertência para
o ar - o condutor da carrinha em fuga parou, antes assumiu uma condução
ofensiva e evasiva.
10. nem com o disparo para o pneu traseiro esquerdo demoveu o condutor em fuga de parar - como lhe competia - o veículo.
11. o condutor estava evadido da prisão há cerca de 8 anos, sendo,
perfeitamente lícito concluir que em momento algum o mesmo iria parar.
12. HE desconhecia a existência de mais passageiros no interior da carrinha.
O Tribunal errou profundamente, na apreciação dos factos como se de uma realidade virtual se tivesse tratado.
Meia dúzia de anos depois o Tribunal voltou a condenar o militar da
GNR, Hugo Ernano, a nove anos de prisão por matar uma criança de 13
anos. O pai da criança, que fugira da cadeia há oito anos e levou o
filho para um assalto, pode receber 20 mil euros de indemnização.
Ora, a livre apreciação da prova (à boa maneira de Orlanda Marques) não é
sinónimo de uma operação intelectual puramente caprichosa e subjectiva,
assente na credibilidade ou não do discurso do acusado, aqui valorada
em termos de fundamentação só porque, no caso, estão envolvidos
elementos de uma etnia que os magistrados receiam e da qual em Portugal
nem se pode dizer o nome.
Uma calhoada jurídica.
Barra da Costa.