Quando a Bíblia Sagrada ameaça o Livro Vermelho de Mao Tsé-Tung - Observador
Há quase tantos cristãos na China como membros do Partido
Comunista. O cristianismo está a crescer e o regime não gosta disso. Wei
foi espancado por acreditar em deus. Hoje, pede asilo em Portugal.
Só pararam de bater em Wei quando a sua cabeça começou a jorrar sangue.
Seis
horas antes, às 17h00 de 14 de julho de 2014, estava a sair de mais um
culto da sua igreja, a Igreja da Família. Ia acompanhado por outras três
pessoas quando lhes apareceu uma carrinha descaracterizada à frente. Lá
de dentro saíram oito homens.
“Vocês que acreditam em deus, subam já!”
Wei está em Lisboa desde março deste ano. (Fábio Pinto / Observador)
Wei
não sabia para onde o levavam ao certo, mas não devia ser muito longe
da sua aldeia na região de Shanxi. A viagem durou 30 minutos. Quando a
carrinha parou, os quatro “que acreditam em deus” foram separados e
levados cada um para o seu quarto.
À espera deste operário de construção de linhas de comboio
de 26 anos estavam cinco homens. “Como é que se chama o líder do vosso
culto e onde é que ele está?”, perguntaram-lhe. Wei não respondeu. Eles
insistiram, com uma nova pergunta: “Onde é que vocês guardam o dinheiro
do peditório na vossa igreja?” Wei voltou a nada dizer.
À medida
que as horas passavam, a frustração dos interrogadores começou a
esgotar-se. Entretanto, fez-se noite. “Atrasado mental, por causa de ti
hoje saímos mais tarde!”, ouviu um deles a gritar-lhe, entre outros
insultos. Pouco depois, começaram a agredi-lo. Demoraram pouco a passar
das chapadas que lhe davam na cara para lhe puxarem o cabelo,
obrigando-o a dar voltas sobre si mesmo com as costas curvadas. Quando
se desequilibrou e caiu no chão, começaram a pontapeá-lo em todo o
corpo.
Wei foi interrogado num quarto fechado entre as
18h00 e a meia-noite. Foi entregue a cinco homens que o espancaram
durante horas. Queriam saber quem eram os líderes do seu grupo cristão e
onde é que eles estavam.
A seguir, um dos homens
ordenou-lhe que se levantasse e que ficasse virado para um dos lados
daquela divisão. Novamente pegando-lhe pelo cabelo, empurrou-lhe a
cabeça para a frente, esbarrando-a contra a parede. Depois, puxou-o para
trás com força, até que a sua nuca bateu na quina de uma mesa. Já eram
23h30, e por entre a cabeleira negra de Wei começou a escorrer sangue,
que não demorou a manchar-lhe a camisola de vermelho.
Finalmente,
apareceu um polícia fardado — a primeira pessoa que viu vestindo um
uniforme desde que foi empurrado para dentro daquela carrinha — que lhe
deu ordem de soltura. “Vai ao hospital tratar dessa ferida que tens na
cabeça”, disse-lhe o agente. Quando se preparava para fechar a porta
do quarto, Wei ainda o ouviu dizer: “Devias saber que na China não vale a
pena ir contra o Partido Comunista Chinês. Quem manda aqui é o partido,
não é deus”. À saída, apercebeu-se de que tinha estado aquele tempo
todo num hotel.
Wei contou a sua história ao Observador já em Lisboa, onde aguarda resposta ao pedido de asilo por perseguição religiosa.
A conversão de Wei
Dois anos antes deste incidente, Wei era apenas mais um entre os
milhões de pessoas que vivem uma vida pacata e ordeira na China rural,
alternando entre o trabalho e a vida pessoal, sem que para isso sintam a
necessidade de um guia espiritual. De um qualquer deus. Como aquele
sobre o qual um pequeno grupo falava à sua vizinha, depois de esta lhes
ter aberto a porta numa pequena aldeia na região de Shanxi.
“Se o vosso deus é tão grande e tão bom, então ele que cure a
vizinha do lado”, respondeu-lhes a mulher perante a tentativa de
evangelização.
A “vizinha do lado” era a mãe de Wei. Já há algum
tempo que era uma pessoa doente, apesar de jovem. Sem aviso, o seu corpo
ficava dormente ao ponto de ela não se conseguir manter de pé. A doença
levou-a à cama, da qual já não se conseguia levantar. Quando os
sintomas começaram a ser mais graves, a família levou-a um hospital. Os
médicos puseram-na a soro, o que melhorou consideravelmente o seu
estado, mas não conseguiam determinar qual era a sua doença. Noutro
hospital, a situação repetiu-se. Depois, Wei foi aconselhado a levar a
mãe a um velho médico de Medicina Chinesa. Este, apesar dos vários anos
de experiência, também não conseguiu ajudá-la. Disse até que não era
“normal uma mulher que ainda é nova ter tanto ar magoado dentro de si”.
Chegaram a tentar um terceiro hospital, mas o resultado foi o mesmo: a
saúde da mãe de Wei piorava a olhos vistos e ninguém sabia o que fazer.
"Antes de me converter ao cristianismo nunca tinha
pensado muito em religião, porque para mim não fazia sentido. Só tinha
duas ideias sobre o assunto. A primeira, é que o budismo é a religião
dos orientais. A outra, é que o cristianismo era dos ocidentais."
Wei
O desespero tem destas coisas. Wei fez algo que nunca tinha feito
antes na vida: tentou a religião. Chegou a ir para um jardim com
estátuas budistas, pedir fosse a que deus fosse, que a saúde da sua mãe
melhorasse. Uma vez que já tinha chegado a esse ponto, quando os
missionários que momentos antes falavam com a sua vizinha lhe bateram à
porta e perguntaram se podiam entrar para orarem pela sua mãe, Wei não
fez mais do que pô-los à vontade.
Wei recorda esta história com um tom de voz sibilino e arrastado. Fala com bastante calma. É difícil imaginá-lo a gritar.
“Os
missionários ficaram à volta da cama da minha mãe e começaram a orar
por ela. E depois disso passaram a ir lá mais vezes. Passados seis meses
destas orações, depois de rezarem tanto pela saúde da minha mãe, ela
começou a melhorar. Começou a conseguir levantar-se, deixou de passar o
tempo todo na cama. Voltou a fazer os trabalhos domésticos.”
Foi
quanto bastou para que Wei e a sua mãe, ateus desde sempre, se juntarem à
Igreja da Família — uma das várias organizações religiosas clandestinas
que funcionam em casas privadas e que são banidas pelo Partido
Comunista da China.
O “Livro Vermelho” e a “Bíblia Sagrada” na mesma prateleira?
A relação da China comunista, fundada em 1949, com a religião nunca foi pacífica. Na sua
autobiografia,
o líder religioso budista, Dalai Lama, relembra um encontro que teve em
1955 com o líder da República Popular da China, Mao Tsé-Tung. Dalai
Lama recorda-se das palavras que o líder comunista lhe dirigiu: “A
religião é um veneno (…). Primeiro, reduz a população, porque os monges e
as freiras praticam o celibato, e, segundo, porque desvaloriza o
progresso material”.
Foram os anos da Revolução Cultural, que não
deixava espaço a nada que fosse para além do maoismo, cujas linhas
orientadoras ficaram eternizadas no “Livro Vermelho”, com citações de
Mao Tsé-Tung. Esta era durou até 1976, quando, no dia 9 de setembro o
único líder que a China comunista tinha tido até então morreu.
"A religião é um veneno (...). Primeiro, reduz a
população, porque os monges e as freiras praticam o celibato, e,
segundo, porque desvaloriza o progresso material."
Mao Tsé-Tung, dirigindo-se a Dalai Lama em 1955
Seguiram-se anos de relativa reforma. E, inevitavelmente, chegaram novos livros. A “Bíblia Sagrada” foi um deles.
Em
1979, o governo chinês voltou a autorizar a existência
da Igreja Patriótica das Três Autonomias. Desde essa altura que este é o
único movimento de expressão cristã permitido pelo regime. E, sem
surpresa, fortemente condicionado pelo mesmo. Ali, doutrinas do
Protestantismo são misturadas com noções de patriotismo, ou vistas à luz
do combate contra o imperialismo ocidental. Os padres são aprovados e
controlados pelas autoridades locais, para que a população não seja
exposta a ideais que não as tradicionais. Segundo o
The Guardian, no Partido Comunista Chinês há quem se refira ao cristianismo como “yand djiáu”. Isto é, “ensinamentos estrangeiros”.
Em
reação, cada vez mais chineses começaram a juntar-se em casas
particulares para celebrarem cerimónias cristãs. Esta religião
espalhou-se sobretudo nos meios rurais, onde o acesso à educação é mais
difícil e o contacto com o exterior é ainda menor do que noutras partes
da China.
Em 2014, o Partido Comunista Chinês anunciou
que tinha 86,7 milhões de membros. O número de adesões caiu pela
primeira vez numa década. Por outro lado, o número de cristãos está a
subir, dizem os especialistas. Já serão quase 70 milhões.
“Começaram
a aparecer muitas pessoas a dizer que eram cristãs, entre aqueles que
têm poucos estudos, quase por uma questão de conveniência. No
cristianismo existe um deus que trata de tudo, podemos rezar para esse
deus e pedir qualquer coisa, enquanto que no taoismo, que os chineses
culturalmente conhecem melhor, existe um deus para cada coisa. Se querem
saúde, têm de rezar a um. Depois para dinheiro, é outro. E se quiserem
ter boas colheitas têm outro, também. Ora, no cristianismo existe um
deus para tudo.”
Quem o diz é Fenggang Yang, diretor do Centro
para a Religião e Sociedade Chinesa da Purdue University, nos EUA. Na
sua ótica, mais do que a ligeira abertura da liberdade religiosa na
China a seguir à morte de Mao Tsé-Tung, o momento-chave que levou ao
verdadeiro crescimento do cristianismo naquele país deu-se em 1989, o
ano dos protestos na praça de Tiananmen, em Pequim.
“O ser humano sempre teve perguntas, faz parte da sua natureza. E a
seguir ao que se passou em Tiananmen muitas pessoas começaram a procurar
um sentido para a vida delas, para o que acontecia à sua volta”,
explica ao Observador, numa conversa por Skype. “Só que aí, finalmente,
começaram a procurar as respostas a essas perguntas na religião, porque
acharam que a política do Partido Comunista já não lhes chegava.”
Segundo
Yang, a partir dessa altura o cristianismo passou a ir para outros
grupos da sociedade chinesa, para além do campesinato. “Hoje em dia, a
população cristã vai desde os meios mais rurais — onde há uma visão mais
simples da religião — até a pessoas com estudos, jornalistas,
académicos… E, claro, cidadãos comuns.”
Yang nasceu, como Wei e
tantos outros chineses, numa família ateia. Em 1997, foi para os EUA
estudar e, pelo caminho, converteu-se ao cristianismo. Poucos anos
depois, em 2000, fez uma experiência numa viagem que fez de volta ao seu
país. “Comecei a perguntar às pessoas se me podiam indicar uma igreja
ali por perto.” Yang sabia que estava a apenas 100 metros de uma. O seu
objetivo era, antes, saber se os outros também sabiam que tinham uma
igreja nas imediações. “Ninguém sabia que havia algo do género naquela
zona, parecia que lhes estava a falar de algo completamente fora do
normal.” Mas, numa viagem “recente”, repetiu a experiência e teve novos
resultados: “Hoje em dia, metes-te num táxi e pedes para ir a uma igreja
e o taxista até te pergunta a qual é que queres ir!”.
Não é certo
quantos cristãos vivem na China. Os números oficiais apontam para 23
milhões de protestantes — uma estimativa que muitos têm como aquém dos
verdadeiros números. Num estudo de 2010, o Pew Research Center adiantou
que deverão existir cerca de 67 milhões de cristãos em todo o país. Algo
que não foge muito aos números avançados por Yang, que fala em 5% de
toda a população e num aumento de 10% a cada ano.
"Em 2030, a China vai quase de certeza ser o país com o
maior número de cristãos em todo o mundo. E isso é algo que preocupa
bastante o Partido Comunista, causa-lhe medo"
Fengggang Yang, diretor do Centro para a Religião e Sociedade Chinesa da Purdue University
Por outro lado, números oficiais do Partido Comunista Chinês
revelados em 2014 indicam que este tem 86,7 milhões de membros. O número
de novas adesões nesse ano desceu pela primeira vez numa década — uma
quebra de 25,5%.
“Em 2030, a China vai quase de certeza ser o país
com o maior número de cristãos em todo o mundo. E isso é algo que
preocupa bastante o Partido Comunista, causa-lhe medo”, diz Yang.
É
esse “medo” que move a perseguição de cristãos na China, algo que se
intensificou desde que Xi Jinping se tornou Presidente, em 2012. O
número de relatos semelhantes ao de Wei, em que membros de grupos
religiosos clandestinos são alvo de agressões e os seus líderes são
presos, são cada vez mais. Ao mesmo tempo, na região de Jendjiang, foram
demolidas cerca de 400 igrejas desde 2014.
“Lá em Portugal eles tratam do teu assunto depressa”
Em consequência, muitos cristãos decidem abandonar a China por razões
de segurança. Em março deste ano, o Serviço de Estrangeiros e
Fronteiras (SEF) registou o pedido de asilo de 40 cidadãos chineses —
foram os primeiros a fazê-lo em Portugal. Wei é um deles.
“Depois
da minha agressão falei com uma pessoa da minha igreja que me falou dos
perigos que eu corria… Mais tarde, disse-me que daquela vez em que eles
me levaram para o hotel e me espancaram, um dos líderes do nosso grupo
foi preso. Por isso, tomei a decisão de sair do meu país.”
Wei foi até uma agência de viagens que lhe foi aconselhada, por já
estarem habituados a tratar de viagens de chineses que pretendem sair do
país com rapidez. A troco de 80 mil Yuan (quase 12 mil euros),
trataram-lhe do visto e da viagem. Lá, aconselharam-no a ir para
Portugal. “Eles lá tratam do teu assunto depressa”, disseram-lhe. Oito
meses depois de ter sido espancado naquele hotel, fez as malas,
despediu-se da família e embarcou num avião. Pelo caminho, fez escala em
Istambul, na Turquia. Depois, chegou a Lisboa. No dia 8 de abril,
apresentou um pedido de proteção internacional ao SEF. Até hoje, aguarda
uma resposta.
Desde que chegou a Portugal, Wei só foi a Lisboa uma
vez. Quis ir a uma igreja no Martim Moniz. Estava decidido a entrar, mas
quando viu o edifício pela frente parou o passo e hesitou. Pensou
duas vezes.
Até agora, Wei fala pouco português — fá-lo com o mesmo tom de voz
que usa para falar mandarim, mas neste caso este vem acompanhado de um
sorriso atrapalhado. Todos os dias, junta-se com outros chineses que
também alegam terem sido vítimas de perseguição religiosa no seu país
para rezar. As cerimónias são feitas com a ajuda de uma pequena bíblia
em mandarim, de capa preta e com as folhas coloridas a rosa choque na
parte de fora.
Para já, ainda não conhece bem a capital
portuguesa. Só foi uma vez de livre iniciativa ao centro lisboeta. Mais
precisamente a uma igreja no Martim Moniz, cuja localização exata não se
recorda ao certo. Estava decidido a entrar, mas quando viu o edifício
pela frente abrandou o passo e hesitou. Pensou duas vezes e, por fim,
voltou para trás. “Não sabia se era seguro.”
– – –
Nota:
Wei é um nome fictício, que usámos por razões de segurança. Pelo mesmo
motivo, não divulgámos o nome da sua aldeia nem a sua morada em
Portugal.
Texto: João de Almeida Dias
Fotografias: Fábio Pinto
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