O Macroscópio de hoje vai recuperar dois temas que deixámos ontem para trás: a morte de Günter Grass e a evolução da situação na Europa e na Grécia, com alguns desvios pelo meio.
Comecemos por Günter Grass e pelo obituário da Spiegel, como não podia deixar de ser, que o faz em
Farewell to Germany's Towering Literary Figure. Nele não se deixa qualquer dúvida sobre a importância da sua obra: “
As a novelist, he had long been a societal institution, even more of a pivotal figure of the 20th century than Bertolt Brecht. The only man on equal footing with him was Thomas Mann. Even so, nothing could have been more alien to Grass than Mann's affluent and bourgeois milieu. There was something plebeian about the rowdy, clear words with which Grass jumped into the ring throughout his life.” Em Portugal o meu destaque vai para dois textos que evocam a sua obra, e outro que recorda uma das suas grandes controvérsias. Miguel Freitas da Costa, aqui no Observador, em
Gunter Grass: o nosso século, lembrou de forma breve mas muito completa como ele foi “
Premiado, louvado e honrado na Alemanha e fora dela, [sendo] um valor indiscutível, literária e moralmente. Recebeu em 1965 o Prémio Georg Büchner, em 1977 a Medalha Carl von Ossietzky, foi nomeado membro honorário da Academia Americana de Artes e Ciências. Em 1999 a Academia Sueca outorgou-lhe a consagração final, o Prémio Nobel da Literatura. Tinha à época 72 anos. Atrás dele estavam vários outros romances e escritos, quase todos (ou todos) publicados em Portugal. Era, além de escritor, pintor, escultor, ensaísta, artista gráfico. Tinha escrito discursos para Willy Brandt durante muitos anos. Desconfiava da reunificação alemã. Olhava com suspeita o ‘sonho americano’.”
O texto de José Riço Direitinho, no Público -
Nas águas turvas da História – centra-se na obra literária e, por isso mesmo, o pedaço que selecionei é o referente ao seu primeiro romance, que se tornou imediatamente num clássico em 1959,
O Tambor de Lata:
A história de O Tambor de Lata
é-nos narrada na primeira pessoa por Oskar Matzerath, que está internado num “asilo de alienados” depois de ter a ssumido ser o autor de um assassinato que não cometeu, o de uma freira por quem se apaixonara. (…) Nas quase setecentas páginas de narrativa lenta que compõem o romance – divididas em três “livros” – Oskar percorre a história alemã desde 1899 até 1954, centrando-se, sobretudo, no período que medeia entre a ascensão do nazismo e os anos do pós-guerra. É, assumidamente, um livro que pretende perpetuar as memórias da infância do Günter Grass na antiga “cidade livre de Danzig” (actual Gdansk, na Polónia), do quotidiano da vida de província, da invasão alemã da Polónia até à chegada dos primeiros soldados russos, as memórias das dificuldades e da culpa sentida. No fundo, acaba por fazer uma análise das fundações éticas e políti cas da Alemanha. Ainda no Público, Jorge Almeida Fernandes escreve sobre a componente mais política da herança de Grass, em
No coração da tragédia alemã. Começando por considerar que
“O paradoxo é que Günter Grass encarnou o combate pela memória dos crimes nazis, mas mentiu durante 60 anos.”, o autor recorda a forma muitas vezes controversa como ele se envolveu, e tomou partido, nos grandes debates que cruzaram a Alemanha nas últimas décadas. Pequeno extrato:
Como intelectual, tornou-se na “consciência crítica” da Alemanha e figura tutelar da esquerda. Em 1970, acompanhou Willy Brandt na dramática cerimónia em que este se ajoelhou perante o memorial da revolta do gueto de Varsóvia. Depois da reunificação de 1990, que denunciou como uma “anexação” da antiga RDA, Grass passa a designar os alemães não apenas como culpados mas também como vítimas. Em 2006 (na véspera da publicação da sua autobiografia, Descascando a Cebola
), provoca um choque ao revelar que combateu numa divisão das Waffen SS — a força de elite nazi. (Em 2006 eu próprio escrevi, então ainda no Público, sobre a polémica em torno desta tardia confissão. Em
Günter Grass e o dever da memória notei que “
O importante, no caso de Grass, não é pois saber se deixou de valer como escritor=C mas se merece continuar a ser considerado uma referência moral. O importante é perceber como alguém que passou a vida exigindo aos alemães que assumissem a sua memória foi incapaz de revelar a tempo e horas o pedaço mais sombrio da sua própria vida. O importante é levá-lo a responder à pergunta que diz tê-lo atormentado durante toda a vida: "Para mim tudo rodou sempre em torno da mesma questão, a de saber se poderia ter tido consciência do que se passava à minha volta naquele tempo." Isto é, se podia ter evitado apoiar na adolescência o regime nazi.”)
Um bom complemento para compreender melhor a forma como pensava Günter Grass é-nos dado pela leitura da que será a sua última entrevista, ainda inédita, e que o El Pais revela hoje. O Observador fez um resumo do essencial -
Günter Grass: "Vamos ter uma III Guerra Mundial" – mas vale sempre a pena ir à fonte, isto é, à transcrição pelo El Pais da conversa entre um seu jornalista e o escritor a 21 de março passado, na sua casa de Lübeck:
Günter Grass: “El dolor es la principal causa que me hace trabajar y crear”. Pequeno extrato:
Cada persona tiene su propia situación y yo me di cuenta de que no sólo podía expresarme artísticamente sino que tenía que tratar unos determinados temas, el de mi juventud, el de la capitulación absoluta de Alemania, con la destrucción total de todas las casas pero tambié ;n con el desmoronamiento de las personas…P. Una historia de dolor…R. Durante toda mi vida, y hasta hoy, esto sigue igual. Y lo increíble es que Alemania es una historia sin terminar, porque el Holocausto y el genocidio, estos horribles crímenes, constituyen una historia que no acaba nunca. Ahora lo vemos en Grecia: nos enfrentamos otra vez con el problema de los horrores causados por los soldados alemanes durante la ocupación… Esa historia nos sigue y nos sigue… Así que vuelvo otra vez al tema del dolor de Camus: el dolor es la principal causa que me hace trabajar y crear. Aproveito a deixa para passar ao tema da crise grega, de que ontem voltámos a ter notícias pouco entusiasmantes. Do lado do FMI ficámos a saber que este
não acredita que venha a haver acordo com a Grécia. Já do lado da Grécia veio um aviso em forma de ameaça, como habitualmente protagonizado pelo parceiro nacionalista do Syriza, que “
Se houvesse eleições duplicávamos a votação”. Já mais perto do fim da tarde, o vice-presidente da Comissão Europeia veio dizer que
não deverá haver acordo para a Grécia na reunião do Eurogrupo de dia 24.
O que pode acontecer? Na Spectator escreve-se abertamente o que se sussurra por todo o lado:
A Greek default is coming – as soon as next month. Martin Vander Weyer considera nesse texto que “
Greece’s tax collections are so feeble, its ability to re-finance maturing public debt so perilous, its commitment to reform so unconvincing and outflows of funds from its banks so torrential that the likelihood of avoiding default — and possibly chaotic exit from the euro — is rapidly vanishing. Even if a last tranche of bailout money is finally released, relief will only be temporary.” Tony Barber, do Financial Times, que está em Atenas, dava-nos hoje mesmo uma antevisão das dificuldades políticas que o primeiro-ministro Alexis Tsipras tem de enfrentar. E fazia-nos o seguinte aviso:
Don’t bank on Tsipras dumping Syriza’s leftwing diehards. Depois de recordar que, no Reino Unido dos anos 1930, os trabalhistas de Ramsay MacDonald conseguiram marginalizar os esquerdistas para liderarem um governo de unidade num período de grave crise financeira, Barber não acredita que algo de comparável possa acontecer em Atenas, mas continua a ter dúvidas: “
Mr Tsipras seems, then, a flexible politician who, if he chose, could perform a “kolotoumba” and dump the Syriza diehards. A different interpretation is that he is preparing the ground, in the event of a default, for an appeal to all patriotic forces to back him. In only a matter of days, we will find out the truth.”
Termino com um texto difundido pelo Project Syndicate, de Anders Borg, um antigo ministro das Finanças finlandês, de centro-direita, que faz um apelo dire to:
Why Europe Needs to Save Greece. É um texto quase paradoxal, pois nele começa-se por explicar como a Grécia tem sido sempre um caso perdido: “
The fundamental problem underlying Greece’s economic crisis is a Greek problem: the country’s deep-rooted unwillingness to modernize. Greece was subject to a long period of domination by the Ottoman Empire. Its entrenched political and economic networks are deeply corrupt. A meritocratic bureaucracy has not emerged. Even as trust in government institutions has eroded, a culture of dependency has taken hold.” E continua por aí adiante, recordando inclusive a experiência pessoal de relacionamento com sete diferentes ministros das Finanças gregos. Tudo isto dito, acaba porém a defender que “
There are more im portant questions raised by the crisis in Greece than whether the country deserves to be rescued by European taxpayers. At stake are fundamental values and strategic considerations that are central to the European project. Europe is simply more European with a stable partner in Athens.” Para terminar o Macroscópio de hoje deixo-vos, literalmente, um quebra-cabeças que é um desafio:
Descubra se é mais inteligente que um miúdo de 14 anos. Trata-se de um problema de dedução lógica que foi colocado a jovens dessa idade em Singapura e que, como verá (se ainda não viu), exige mesmo que se pense um bocado. Se perder a paciência, pode depois ir ver qual
a solução para o quebra-cabeças, mas com um aviso prévio: ele não é tão complicado como parece.
E assim me despeço por hoje, com desejos de um bom descanso, muitas leituras e um pouco de treino dos seus neurónios. Até amanhã.