Artigo de Germano Almeida, comentador SIC.

Compreender o conflito: seis ideias e seis dúvidas sobre seis meses
Compreender o conflito: seis ideias e seis dúvidas sobre seis meses© Ucrânia assinala os seis meses de guerra com uma exposição em Kiev de equipamento militar russo destruído pelas forças ucranianas (Getty)

Meio ano de guerra - seis ideias para seis meses do maior conflito armado em território europeu desde a II Guerra Mundial.

IDEIA 1 - O CRIME DE PUTIN NA UCRÂNIA MUDOU O NOSSO ESPAÇO DE SEGURANÇA E LIBERDADE

Se voltar a ser normal e aceitável que as grandes potências possam amedrontar e ameaçar os seus vizinhos mais fracos, isso afetará a perceção de segurança e o modo como as pessoas, em todo o mundo, se comportam umas com as outras”. (Yuval Noah Harari)

Uma guerra ilegal, imoral e indecente; o falhanço da "blietzkrig" de uma invasão total em poucos dias; Zelensky recusa a boleia americana e assume a liderança da resistência ucraniana; bravura, comunicação e algumas falhas.

A agressão russa não vai parar: Putin quer acabar com a Ucrânia como país autónomo e soberano; quer fazer da Ucrânia uma espécie de Bielorrússia em ponto grande; achar que será parado com “apaziguamento pela cedência de território” é um erro tremendo.

A guerra na Ucrânia transformou-se num “cenário de pesadelo” de Putin: Richard Dannatt, antigo líder do exército britânico, garante que a guerra não acabou como o presidente russo pretendia e que há um longo caminho a percorrer. "Acho que este é provavelmente o pior cenário para Vladimir Putin, o seu cenário de pesadelo. Se voltarmos seis meses atrás, o que ele tinha em mente e o que os 'media' internacionais esperavam era uma guerra relâmpago por parte da Bielorrússia contra Kiev, para derrubar o presidente da Ucrânia, mudar o regime e o governo da Ucrânia, e assumir o controlo", considerou à Sky News.

Não foi o que aconteceu, o que significa que os militares russos "tiveram de recalibrar o que estavam a tentar fazer". "Sim, eles foram bem-sucedidos a partir da Crimeia e estabeleceram este corredor terrestre da Crimeia através de Mariupol até à Rússia, mas o foco principal tem sido tentar capturar as duas províncias do Donbas, Donetsk e Luhansk. E, de certa forma, esse tipo de 'triturador de carne' precedido por ataques com artilharia pesada foi bastante bem-sucedido por algum tempo, mas tudo mudou novamente agora”. A reviravolta deve-se sobretudo à ajuda do Ocidente, com sistemas de artilharia de longo alcance "muito eficazes". “A confiança dos ucranianos é tanta que estão a preparar uma contraofensiva cuidadosamente pensada para recapturar a cidade de Kherson". "Claro que isso não vai acontecer por algum tempo, mas vai acontecer em algum momento, provavelmente no outono. Está a inverter-se o 'jogo' novamente contra Putin. E, antes dessa provável contraofensiva dos ucranianos, os russos tiveram de reduzir os ataques no Donbass e reforçar na região de Kherson. Houve protestos na Crimeia e isso realmente abalou o povo russo. Não era isto que Putin pretendia seis meses depois."

O preço do gás natural na Europa mais do que duplicou neste meio ano: passou dos 120 megawatt/hora para os 257; queda prevista no crescimento económico global, de 4,1% para 3,2%. Aumento do preço dos bens de consumo e a previsão de que a inflação dispare: inflação nas economias emergentes saltou de 5,5% para 9,5% em meio ano; nas economias mais ricas passou de 3,5% para 6,6%.

A economia ucraniana pode encolher até 40%: PIB ucraniano pode registar em 2022 contração entre os 35 e os 40%, até ao final do ano. A economia russa deverá contrair pelo menos 11% em 2022 (em 2021 cresceu 4,6%, em 2020 tinha subido 2,5%).

2 - O FIM DA ILUSÃO DE PAZ E PROSPERIDADE

“Tal como Estaline, Putin acredita na violência em larga escala para defender o seu poder e os seus interesses”. (Anne Applebaum)

O Precedente do Agressor Premiado; vai voltar a valer mudar fronteiras à força bruta; voltar ao essencial: a aceleração do regresso euro-atlântico. Medir o declínio liberal (e antecipar ressurreições imperialistas); A tentação autoritária e as limitações comerciais; Podemos confiar nas instituições internacionais?

A Rússia mata, destrói e rouba porque considera que a Ucrânia é sua – isso primeiro gerou choque e pavor, agora começa a parecer normal e repetido: mas não pode ser. É esse o grande risco. Invasão ordenada por Putin quebrou consenso de sete décadas em espaço europeu de que não se definem fronteiras à força bruta, mas com acordos.

3 - NOVOS RISCOS, NOVA SEGURANÇA

O Ocidente (alargado) isola a Rússia de Putin. Moscovo procura novos aliados. | A NATO: de “morte cerebral” em modo revitalização em poucos dias; A coragem lúcida de Suécia e Finlândia; Reforço do flanco leste, a Rússia hostil e o desafio chinês: o novo conceito estratégico da NATO. É o regresso da Geoestratégia.

Lições e hesitações da China sobre o que fazer com Taiwan; a Turquia salomónica e a oportunidade de Erdogan. O legado positivo de Guterres (ou a última via de uma ONU relevante) – primeiro a solução à 25.ª hora para os civis de Azovstal, depois os cereais, possivelmente também o esclarecimento do que se passou em Olenivka.

G7 vs BRICS e o falso fantasma da "NATO asiática" . Zelensky promove “Iniciativa de Kiev” com Polónia, Hungria, Roménia, Eslováquia e estados bálticos; caminho enquanto Ucrânia não consegue entrar na EU.

Os Riscos na central de Zaporíjia, maior nuclear na Europa e ocupada pelos russos, serão forte teste à verdadeira extensão do que pode acontecer nesta guerra. Os| Acordos de Istambul com ONU e Turquia e agora a questão dos inspetores da Agência Internacional de Energia Atómica em Zaporíjia parecem sinalizar vontade de Moscovo de revelar algum tipo de responsabilidade global em temas que extravasam a esfera Rússia/Ucrânia e afetam todo o mundo (segurança alimentar, risco de colapso nuclear).

4 - RÚSSIA FALHOU PRIMEIRA FASE, TEVE GANHOS NA SEGUNDA, ESTA TERCEIRA ESTÁ NUM EMPATE

Ataque inicial às grandes cidades foi erro tremendo (Kiev e Kharvkiv falharam); depois Moscovo recuou para reagrupar e pôs todas as fichas no Donbass, onde venceu pela destruição quase total, mas à custa de cerca de 200 mortos/dia.

Estamos numa numa terceira fase da guerra, com avanços demorados da Rússia em Donetsk, com avanço de apenas um quilómetro/dia (média do último mês), e início de contraofensiva ucraniana em Kherson e Crimeia (resultados incertos, mas possível escalada se receberem mais armamento do exterior).

Que isto fique claro: há um agressor e há um agredido. Esta é a primeira vez que vemos uma Guerra em direto do lado do invadido. O que devia ser óbvio para todos e as falsas equiparações: Bucha, Borodyanka, Mariupol, Severodonetsk, Kremenchuk: momentos definidores; o Sul reage: a (possível, incerta) viragem em Kherson e o risco de ressuscitar a questão da Crimeia.

5 - A ARMA DO CANSAÇO E DAS CONSEQUÊNCIAS ECONÓMICAS E POLÍTICAS

Putin sabe que a “guerra do desgaste” não é só de atrito pela artilharia no terreno; está a jogar com as armas alimentar e energética, apostando no cansaço dos eleitorados dos países que dão apoio à Ucrânia. Aposta no congelamento do conflito, sabe que prolongamento o beneficiará, está habituado a isso e não tem que lidar com eleições livres; do lado russo, Putin explora sentimento de China e mundo em desenvolvimento (África, Médio Oriente, Ásia) de que “mundo unipolar americano” está obsoleto e deve ser contestado.

A incógnita do Kremlin pós-invasão da Ucrânia (que o mistério sobre a morte da filha de Alexander Dugin adensa).

6 - A HORA H DA COESÃO EUROPEIA

A Europa volta a desmentir as notícias da sua morte. Manteve coesão a 27 nos momentos fundamentais, avançou com sete pacotes de sanções contra a Rússia, aprovou planos de apoio à Ucrânia e de redução de dependência dos combustíveis fósseis russos. Isto apesar da constante exceção húngara (até quando?)

O risco energético e as respostas de emergência; testes de stress às democracias liberais: as ameaças populistas do presente e do futuro próximo.

A Ucrânia permanece em dilema existencial: lutar por tudo até ao fim ou negociar o Donbass e ceder a Crimeia?

E o que mais Putin poderá querer?

E como será uma Ucrânia reconstruída pós destruição russa? Quanto custa, quem paga, quanto tempo vai demorar? Será possível uma coabitação entre russos e ucranianos, vizinhos ditados pela geografia, depois de guerra tão longa e dolorosa?

SEIS DÚVIDAS NO TERRENO ATÉ QUE CHEGUE O INVERNO:

1 - Vão os russos tomar o resto de Donetsk, fechando assim o Donbass?

2 - Mykolaiv pode tornar-se a base de ação russa para o ataque final a Odessa?

3 - Vão os ucranianos obter ganhos decisivos na contraofensiva a Sul?

4 - Vai a Crimeia voltar a estar em jogo, apesar de ter sido anexação russa em 2014, pré-invasão da Ucrânia a 24 de Fevereiro?

5 - Vão os EUA continuar a apoiar a Ucrânia de forma quase ilimitada? E por quanto tempo?

6 - O impasse na capacidade militar dos dois lados poderá obrigá-los a começar negociações de paz? E com quem (Turquia? ONU? EUA?) ?