sábado, 28 de novembro de 2020

OBSERVADOR - DESPORTO - 28 DE NOVEMBRO DE 2020

 

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Observador

Desporto

Fotografia de Bruno Roseiro
Bruno Roseiro
Editor de Desporto
Sexta,27 Nov 2020
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Olá Diego,

Nunca nos chegámos a conhecer pessoalmente. Vi-te jogar em Portugal, também estive naquele Mundial de 2010 na África do Sul em que já eras selecionador, mas nunca chegámos a falar. Tu, como poucos, és daqueles com quem todos gostávamos de falar – mas ninguém sabia ao certo o que dizer quando essa oportunidade divina chegasse. Pessoas como tu são assim, têm 1,65m e são enormes. Gigantes. Intimidam. Metem até medo. Depois, fintava-se a tímida vergonha de quem está perante um ser superior e percebia-se que eras um de nós. Nasceste com uma única missão de seres tu e foste tu em todas as missões durante 60 anos. Foi isso que fez de ti o mais imperfeito entre os perfeitos. O mais humano entre todos os não humanos. O maior entre todos os maiores. Essa coisa do quem é o melhor de sempre não é a tua praia – sempre soubeste isso, porque foste, és e serás único.

Se te pudesse oferecer alguma coisa, a primeira ideia que me passa pela cabeça é uma laranja. O mais fácil podia ser agarrar num papel e numa caneta e colocar-te à frente mas sei que se fosse tema livre desenhavas uma bola. Percebo, é a tua melhor amiga. E também ela vai ter uma relação contigo como com mais ninguém, onde quer que estejas. Com uma laranja, podias fazer tudo o que sempre fizeste. Podias começar a dar toques sem parar como naquele dia em 2015, na Coreia do Sul, em que ficaste tão espantado por só teres dado dois toques sem a deixar cair que a seguir foram mais de 20 consecutivos. Mas também podias espremer o sumo que quisesses como fizeste das defesas sempre que te faziam chegar a bola mesmo que estivesses de costas para a baliza. Ou podias apenas descascar e distribuir um bocado por todos os que estivessem à tua volta, como fizeste vezes sem conta. Se calhar eram histórias que não vendiam mas também foi por esses momentos que se fizeram jornais.

Vou contar aqui dois entre muitos exemplos. Em 1984, quando os napolitanos começavam a perceber os poderes divinos daquela camisola com o número 10 nas costas, um pai que tinha o filho doente e que não tinha dinheiro para pagar uma operação que era indispensável deslocou-se ao clube para ver a possibilidade de haver um jogo particular que arrecadasse fundos para a intervenção. O Nápoles, solidário com a situação, não aceitou essa possibilidade de organizar um encontro. Tu, quando soubeste o que se passava, vestiste o equipamento, calçaste as chuteiras e foste para um campo sem condições que se encheu por ti (e pela criança). Nesse dia, a lama foi o maior adversário mas mesmo assim voltaste a fazer um daqueles golos em que fintavas quatro ou cinco. Acabou, foste cumprimentar o pai e promotor da iniciativa e foste à tua vida. Nunca ligaste muito ao que diziam alíneas de contratos ou patrocinadores, como naquele dia em 1993 em que foste ao maior programa da TV argentina no regresso via Newell’s Old Boys com uma camisola comprada pela tua mulher numa pequena loja de roupa. Sem teres noção disso, tinhas feito a maior publicidade possível a um espaço que se transformou em 15 com mais de 40 funcionários por esse momento, mas quando quiseram oferecer-te roupa gratuita para retribuir não aceitaste por achares que não fazia sentido poderes pagar e levares de borla o que a ti pouco ou nada custava.

Sempre foste fiel ao que descreveste como um bairro privado de Buenos Aires, Villa Fiorito. “Um bairro privado de água, de luz e de telefone”. Porque até mesmo quando tinhas tudo sabias que cada momento, cada finta, cada assistência ou cada golo era quase o pão na mesa de quem não tinha nada. Foi isso que fizeste pela Argentina, foi isso que fizeste em Nápoles. Parecia o casamento mais improvável do futebol mundial, ficou como casamento de maior sucesso do futebol mundial. E, confessa, gostavas desses desafios. Ganhar com os melhores nunca foi para ti. Preferias ganhar como os melhores, a bater o pé aos melhores. Também isso fez de ti melhor, até porque em Itália houve um contexto social a servir de fundo para uma das mais encantadoras histórias no desporto.

Os excessos privaram-te de mais. “Se não fosse a cocaína, imaginem o jogador que tinha sido”. Eras tu próprio que o dizia. Que admitias. E esse esteve longe de ser o único excesso, ficou só como o pior de todos os excessos. Sabias que não o devias ter feito, assumiste culpa em algumas entrevistas, mas foste tu. Tu e sempre tu. Mesmo não gostando dessa parte, aceitaram-te na mesma porque eras assim e foi por isso que, depois das duas maiores suspensões por doping, fizeram de ti literalmente um Deus com a criação de uma Igreja com o teu nome. Até aqui foste único porque dentro da religião que é o futebol houve uma só para ti. Lá está, porque foste sempre tu.

Ganhaste o Mundial de 86 sozinho como nunca mais ninguém vai conseguir fazer numa prova destas contra o então provável domínio das formações europeias. Ganhaste dois Campeonatos e uma Taça UEFA inéditas na história do Nápoles contra o domínio dos clubes do norte. Ganhaste mais alguns troféus contra rivais regionais. Mas, no final, não ganhaste contra ninguém; ganhaste a favor de todos. Por todos. Para todos. E o maior título de todos foi seres capaz de, na hora em que todos procuravam um ombro para chorar o amigo que só conheciam da TV e dos jornais, juntares adeptos do Boca Juniores e do River Plate. Ou aqueles barras bravas tantas vezes ligados ao pior do futebol que pareciam miúdos perdidos em lágrimas na primeira das últimas homenagens que terás a partir deste 25 de novembro de 2020. Ganhaste tudo quando só pediste uma coisa: a bola.

Ainda te lembras daqueles aquecimentos no San Paolo (ou futuro Diego Armando Maradona) em que estavas na tua, sozinho, só a fazer malabarices com a bola perante pessoas que pagavam bilhete para essa parte antes do jogo? Foste a diferença entre ir ao estádio ver um espetáculo ou ir ao estádio fazer selfies do espetáculo. Ainda te lembras daquela jogada em que fintaste cinco ingleses no lance do século? Foste a diferença entre aquele futebol selvagem e este futebol mecanizado. Ainda te lembras daquelas conferências em que dizias o que tinhas a dizer seja contra quem fosse? Foste a diferença entre ser popular e ser populista. Ainda te lembras daqueles golos no Barcelona em que fazias chapéus aos guarda-redes ou punhas no chão mais um defesa quando podias apenas ter encostado para a baliza? Foste a diferença entre irreverência e insolência. Foste e és. E serás. Porque o futebol mudou, nunca mais será igual, mas está assente na tua figura, inspirado no que eras, a inspirares pelo que foste.

Sabes, lá em cima quando escolhi a laranja não foi por acaso. Faz-me lembrar Holanda, faz-me lembrar Cruyff. Olhando para toda a história do jogo, pensando na forma como soube interpretar o Futebol Total como jogador e criar o Dream Team como treinador, o 14 ficará para sempre como a figura que mais se destacou na evolução do futebol. Esse é e será também para sempre o seu espaço. Tu eras o futebol. Aquele futebol puro, de rua, daqueles a quem o Pai Natal podia trazer uma bola de trapos, de meias ou de papel com fita-cola que era a melhor prenda. Do nada, conseguiste tudo. Com o tempo, ganhaste espaço. Entre os defeitos, só se viam virtudes. Foste um génio sem querer e um ícone para todos os que te queriam. E querem. E quererão, porque génios como tu são eternos.

Diego Armando Maradona morreu esta quarta-feira, por volta das 12h na Argentina (mais três em Portugal), numa informação avançada pelo Clarín que rapidamente se alastrou ao mundotal como as reações à morte do astro aos 60 anos. O velório e o funeral realizaram-se esta quinta-feira, entre alguns excessos num dia de comoção onde até os maiores rivais se juntaram para chorar um ícone planetárioEl Pibe estava ansioso, angustiado e com um estado de saúde a fragilizar-se nos últimos dias. “Obrigado por ter jogado futebol. É o desporto que me deus mais alegria, mais liberdade, é como tocar o céu com as mãos. Obrigado à bola. Colocaria isso na minha lápide”, disse numa entrevista feita a ele próprio conhecida após a sua morte. “Se morrer quero voltar a nascer e voltar a ser futebolista. E quero voltar a ser Diego Armando Maradona. Sou um jogador que deu alegrias às pessoas e isso já me chega e sobra”, recordara numa outra conversa. E cá estaremos à espera, com a fé que o Deus mais imperfeito espalhou.

EU, A TV E UM COMANDO

29 de novembro

19h45Serie A: Nápoles-Roma
22h20Copa Maradona (Zona 4): Boca Juniors-Newell's Old Boys

30 de novembro

20h10Copa Maradona (Zona 5): Aldosivi-Argentinos Juniors

O JOGO EM PALAVRAS

PÓDIO

1

O velório de amor, lágrimas e excessos. Como Diego

Camisolas, bandeiras, tarjas, bonecos, pins. Tudo serviu para homenagear Diego num velório que acabou em confrontos no final. E até rivais de morte celebraram a vida de Maradona agarrados em lágrimas.

2

Crónica. Finta de Maradona, uma bola menos redonda

Há o fã que lamenta a morte; a alegria de quem viu os golos; ou a inveja de quem nunca pisou o mesmo estádio. Mas também há sempre a certeza de termos ficado todos sem compreender o homem.

3

O gesto humilde de Diego Maradona

Em 1984, Diego Maradona desrespeitou o Napóles e decidiu jogar numa partida de beneficência para ajudar uma criança doente nos subúrbios de Napóles. El Pibe marcou dois golos na partida.

O ESPECIAL

Fotografia
DIEGO MARADONA

A última morte de Diego Armando Maradona /premium

Como o deus-demónio absoluto (1960-2020) nos ensinou a respeitar e a admirar mais os imperfeitos do que os imaculados. A dobrar-nos com mais reverência perante o pecador do que o santo.

TERCEIRO TEMPO

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