O dia em que o António se sentou no lugar do primeiro-ministro
Para responder sobre Sócrates, António Costa disse que não podia falar como chefe do Governo nem como líder socialista - mas só como cidadão - e recuou para a velha cartilha do secretário-geral do PS sobre o processo. O caso chegou ao Parlamento pela primeira vez pela voz do PSD: Rio vai começar a dar um banho de ética?
TEXTO VÍTOR MATOS
Pela primeira vez na história parlamentar recente, o António, o cidadão António Costa - nem era primeiro-ministro nem era o líder partidário -, respondeu a um deputado na Assembleia da República. No lugar onde costumam sentar-se os primeiros-ministros, António respondeu ao líder parlamentar do PSD, Fernando Negrão, sobre o caso do ex-militante socialista José Sócrates. Na verdade, foram duas estreias: José Pinto de Sousa, o acusado, também tinha chegado ao plenário pela primeira vez.
Enquanto o PSD voltou a uma oposição agressiva que nunca tinha exercido desde que Rui Rio chegou à liderança, António Costa recuou nos argumentos para a cartilha que o PS usou ao longo dos últimos três anos para se referir ao caso Sócrates. Os mais altos dirigentes do PS, sobretudo Carlos César, usaram termos fortes na semana passada, como “vergonha”, “tristeza”, “revolta” ou “raiva”. A verdade é que o primeiro-ministro, mesmo na declaração que fez no Canadá, falou em “desonra”, mas referiu-se apenas a Manuel Pinho (apesar de a pergunta abranger ambos os casos).
Agora, no Parlamento, Costa considerou a pergunta de Negrão uma “deslealdade parlamentar”, mas para não se refugiar em “formalismos” respondeu… simplesmente como António Costa. Era mesmo, afinal, um mero formalismo: o cidadão António acabou por responder a Negrão com os argumentos do secretário-geral do PS. Disse que o Partido Socialista nunca saiu do mesmo lugar, apesar de toda a gente ter achado o contrário ao longo da semana, invocou a presunção de inocência, e que nenhum cidadão está acima da lei. Foi buscar o guião antigo, baralhou e voltou a dar.
Qual a estratégia? Contenção de danos, mas sobretudo contribuir para se estabelecer um cordão sanitário à sua volta, para o próprio primeiro-ministro não ser arrastado para os comentários ao caso Sócrates sempre que mais uma polémica venha à baila. Agora que todos aqueles qualificativos sobre o que sente o PS em relação ao antigo secretário-geral estão ditos, os socialistas não vão estar a repeti-los todos os dias. As águas estão separadas. Sócrates está fora. Abre-se uma nova fase. E Costa volta a remeter-se ao discurso mais politicamente correto possível, percebeu-se no Parlamento.
Quem muda de posicionamento é Rui Rio e o PSD. Depois de querer chamar Manuel Pinho ao Parlamento, o líder social-democrata cavalga mais um caso - o caso de todos os casos. Se o líder do PSD parecia ter pudor em falar de processos em curso na justiça, pode ser agora que começa a dar umas chuveiradas do prometido “banho de ética”. Num primeiro momento, Negrão embaraçou seriamente António Costa.
Desconfortável, Costa contra-atacou ao lembrar que Negrão também foi arguido: só não disse que foi por causa de uma violação ao segredo de justiça, quando era diretor nacional da Judiciária e que lhe custou a exoneração do cargo durante um Governo socialista (e antes de qualquer julgamento nos tribunais). O líder parlamentar do PSD devolveu a amabilidade ao recordar que António José Seguro o acusou, antes das primárias do PS, “de ser apoiado por um partido invisível que mistura negócios e política”. A acusação ficou implícita.
Assunção Cristas usou outra estratégia e apontou para outro alvo: Manuel Pinho. Como é que António Costa pode evitar que aconteça outro caso destes no Governo, de um governante que recebe de uma empresa? António Costa pediu sugestões, chutou para canto, mas a questão ficou no ar. Mesmo que fosse apenas uma questão retórica, a pergunta de Cristas deveria permanecer para os partidos refletirem: que “mecanismos” é que se podem criar para impedir mais casos semelhantes. “Não vou ter uma desconfiança geral sobre todos os seres humanos”, respondeu Costa. É uma boa demarcação de posições: o pessimismo antropológico é uma característica genética da direita e Costa é de esquerda.
O problema da corrupção foi atravessando o debate, mas com mais subtileza. O Bloco de Esquerda lembrou que o Presidente da República vetou um diploma sobre o levantamento do sigilo bancário e perguntou se já existiam as condições para o texto voltar a ser votado. O tema voltará ao debate no dia 17 de maio, até porque o PSD quer conhecer os maiores devedores da Caixa Geral de Depósitos. Se o BE marcou posição e mostrou iniciativa, o PCP, mais ideológico, ficou-se pela responsabilização das privatizações pela corrupção e pelas suspeitas. Pouco mais.
Numa semana em que os atrasos na preparação para o combate aos fogos voltaram à discussão pública, o primeiro-ministro atribuiu os problemas que permanecem a uma “ambição excessiva”. Neste dossiê levava uma flor na lapela para ter um momento de spin: o anúncio de um de sistema de alerta às populações por SMS em caso de incêndio. O cidadão António saiu do Parlamento, mudou de fato, vestiu-se de primeiro-ministro e foi a Belém reunir-se com o Presidente da República. A seguir fardou-se de secretário-geral do PS e foi em campanha interna para Coimbra. Três frentes e muitos fogos para o líder socialista apagar.
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