sexta-feira, 5 de agosto de 2016

OBSERVADOR - 5 DE AGOSTO DE 2016

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!


Numa das mais conhecidas novelas de Gabriel Garcia Márquez, um velho veterano de guerra espera na sua ilha que chegue a carta coma notícia que lhe foi atribuída a pensão que lhe permitiria escapar à vida de miséria que leva. Mas a carta não chega, nunca mais chega, e por isso, se Ninguém Escreve ao Coronel, este acaba... Bem, leiam Garcia Márquez, que ele merece, pois o me fez lembrar este romance não foi o seu enredo, mas o seu título: é que, percorrendo a imprensa deste últimos dias, ninguém escreve em defesa de Rocha Andrade, o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais que aceitou ir ver dois jogos da selecção a convite (com tudo pago) da Galp, uma empresa que está em litígio com o Estado por causa, exactamente, de uma questão fiscal.

Senão, vejam este apanhado do que foi publicado nos dois últimos dias na imprensa portuguesa:
  • O problema de não se dar ao respeito, que eu mesmo escrevi para o Observador, onde analiso em detalhe a conferência de imprensa e os argumentos do ministro dos Negócios Estrangeiros (que representa o primeiro-ministro em férias) e onde contesto a ideia de que o pagamento das despesas pelos secretários de Estado permitam considerar o caso encerrado: “Se não houve violação da lei, porquê o pagamento? Então não foi este mesmo Governo que acabou de decidir devolver ao Presidente da República o cheque com que este quis pagar um voo de Falcon para ir assistir a um dos jogos da selecção? Nesse caso não havia qualquer dúvida, não era para pagar, e agora é necessário “dissipar dúvidas”? A leitura é clara: se, por um lado, o ministro tentou proteger os secretários de Estado com a leitura que fez do Código Penal, ao elogiar o pagamento e ao anunciar o código de conduta está a dizer-nos que, eticamente, o que eles fizeram levanta “dúvidas”. E que daqui por umas semanas até vai deixar de ser “ético”. Ou seja, enterrou-os ainda mais.”
  • Rocha Andrade e as prendas da Galp, de João Miguel Tavares no Público, onde este lembra o código de comportamento que os deputados do PS assinaram e contrasta esse gesto politico com aquilo que sabemos: “Ups, lá se vai o código de António Costa. É óbvio que tal conflito existe, por muito apetecível que seja ir à borla à final de um Europeu. Aceitar tais convites pode ser banal, e acredito que se tivéssemos acesso à lista integral de convidados da Galp passaríamos 15 dias a indignar-nos. Mas por alguma razão o convite foi endereçado a Rocha Andrade e não a mim, nem a si, caro leitor. Um secretário de Estado dos Assuntos Fiscais ir à bola patrocinado por um contribuinte da dimensão da Galp não é natural, não é adequado socialmente, e muito menos é adequado politicamente.”
  • "O pagamento dissipa as dúvidas?" Não. Agrava-as!, de Camilo Azevedo no Jornal de Negócios: “A comunicação de que o secretário de Estado dos Impostos pagará a viagem do seu bolso resolve o problema (como disse o ministro dos Negócios Estrangeiros na conferência de imprensa)? Não. Agrava-o. Ao pagar, o governante reconhece que não devia ter aceitado o convite da Galp. E, pior ainda, que só o fez depois de a história divulgada pela revista Sábado ter ganho dimensão de escândalo.”
  • O 'hit' de Verão da Galp, de Tiago Freire no mesmo Jornal de Negócios, que dando o benefício da dúvida a Rocha Andrade, não deixa de criticar o seu comportamento: “Até prova em contrário, parece ser uma pessoa séria e de convicções, e não é isto que o muda. Mas sendo titular de uma pasta política com natural contacto com um dos maiores contribuintes portugueses, o Secretário de Estado devia ter tido o bom senso de declinar o convite institucional que lhe foi feito. Por uma simples razão: uma viagem ou um jantar não está associado directamente a um favor, mas temos sempre de nos perguntar o que a leva a empresa a fazer determinado convite.”
  • Regras e transparência, o editorial de Leonídio Paulo Ferreira no Diário de Notícias: “É importante que haja bom senso da parte de quem aceita um convite. Não é o mesmo aceitar um convite da federação e aceitar um convite de uma empresa, mesmo que patrocinadora. E não é o mesmo aceitar um convite de uma empresa e aceitar o convite de uma empresa com a qual se está de alguma forma em conflito.”
  • Silly mas não demasiado, por favor, de Martim Silva no Expresso Diário (paywall), que analisa a polémica do IMI e o Galpgate, notando que “quando o mesmo Rocha Andrade, perante a delicada polémica envolvendo a Galp, decide, encurralado, que afinal vai pagar uma viagem num avião fretado e o dinheiro do bilhete. Como se isso resolvesse o problema político entretanto colocado – do género, 'tomem lá e não se fala mais nisto!'” Aproveita também para tecer criticas aos partidos da direita que “vêm, ufanos, pedir a cabeça do secretário de Estado que viaja para ver um jogo da bola, sabendo, como sabem que a prática é generalizada e tem anos. Ou os governantes do PSD e do CDS nunca foram ver jogos a convite? Por amor de Deus, quem querem enganar? Já sabemos, estamos em Agosto. A season é silly. Mas convém não abusar...”
  • Subir a pulso ou viver de favores, de Raquel Abecasis na Rádio Renascença, onde se chama a atenção para algo que devia ser claro: “Alguém acredita que os convites foram feitos por acaso? Não, mas o Governo diz que isso já lá vai, os senhores vão pagar as despesas e o assunto está encerrado. Esperemos que não esteja encerrado, porque os dossiers estão na mesa do governo à espera de decisões que os responsáveis políticos não podem tomar, sob pena de verem impugnadas as suas decisões.”
  • Quem não quer ser lobo..., de António Esteves no site da RTP, onde recorda que a prática deste tipo de convites é bastante generalizada, mas que isso não iliba o governante: “Acredito que Rocha Andrade tenha pensado duas coisas quando recebeu o convite, ambas erradas: que várias pessoas recebem e aceitam, mesmo quando exercem funções governativas, e que sabe bem aproveitar estas borlas enquanto dura o cargo que as justifica. Poderá até ter acreditado que não se deixaria condicionar no futuro. Rocha Andrade não percebeu o que estava em causa e por isso entendeu que pagando o valor das viagens à GALP o caso estaria resolvido. Não está.”
  • Rocha Andrade, o sol e as sombras da matéria, de Ana Sá Lopes no jornal i, um dos primeiros textos a serem publicados e que reflecte sobre os danos políticos que este caso, associado à polémica do IMI, pode causar: “Mais problemática do que a taxação do sol, para o secretário de Estado Rocha Andrade, foi a aceitação de isenção de taxa para ver o futebol, à conta da Galp, que está em guerra com o Estado por causa do pagamento de impostos. O que passou pela cabeça do secretário de Estado quando aceitou um convite destes? Ingenuidade política elevada ao cubo? Ignorância de que o sol já era taxado, mas a Galp não? A aceitação deste convite fez mais pelo descrédito do governo do que o aumento do IMI.”



Antes de sairmos de Portugal para abrir um pouco os horizontes, deixem-me ainda referir um daqueles textos de opinião que é, ao mesmo tempo, um texto onde aprendemos história e economia. Refiro-me a O imposto sobre janelas, à portuguesa, de Helena Garrido aqui no Observador, onde a colunista recorda a experiência – famosa por maus motivos – dos impostos sobre janelas no Reino Unido para criticar a ideia de um IMI que penalize as habitações com melhor exposição solar. Pequena passagem: “No Reino Unido o efeito do imposto sobre as janelas foi tirar a luz aos mais pobres e alterar a arquitectura. No novo IMI vamos tirar a luz e as vistas aos remediados. Só os ricos passam a conseguir ter sem problemas casas viradas a Sul, com bons terraços e boas vistas. Para os outros que queiram poupar no IMI, ficam as casas viradas para o frio e escuro Norte e as vistas de cemitérios, lixeiras ou ETAR.”

(Leitura complementar: o texto de João César das Neves no Diário de Notícias, A pergunta decisiva, onde o professor de Economia discute a falta de investimento em Portugal: “A questão decisiva da economia portuguesa é saber por que não cresce o investimento, qual a razão dessa terrível situação? A resposta está precisamente no enviesamento dos debates e temas que ocupam as autoridades. Quem é que, português ou sobretudo estrangeiro, quererá investir num país com esta governação? Os empresários não são estúpidos e sentem bem o clima político. Num mundo globalizado é difícil um país atrair empreendimentos de valor, mesmo quando se empenha nesse sentido. Quando se ignora a questão, dedicando-se a distribuir benesses que ainda não foram produzidas, os investimentos não só não vêm, mas até se perdem os que se tinham.”)


Esta última referência proporciona-me uma boa passagem para um texto que permite ao Macroscópio regressar a um tema que tem sido recorrente nestas newsletters: a da falta de crescimento, ou de ritmos de crescimento muito débeis, em todo o mundo desenvolvido. Faço-o agora para referir um texto de Martin Wolf no Financial Times que tem como ponto de partida um livro que está a ter grande impacto nos Estados Unidos e nos meios académicos: The Rise and Fall of American Growth: The US Standard of Living Since the Civil War, de Robert Gordon. Em An end to facile optimism about the future o influente colunista do Financial Times nota que “The story told by Prof Gordon demolishes both facile optimism about prospects for economic growth and facile pessimism about the end of employment. We are neither in the middle of an era of unprecedented economic advance nor on the brink of an era of exceptional job destruction. This is partly because technological progress is so limited. It is also because so much of our economy is immune to rapid productivity rises.” Ou seja, não estamos perante boas notícias. Daqui que acrescente: “The view that steady and rapid rises in the standard of living must endure is a pious hope. The tendency to believe that some “structural reforms” will fix this is, similarly, an act of faith. It is essential for policy to promote invention and innovation, so far as it can. But we must not assume an easy return to the long-lost era of dynamism. Meanwhile, the maldistribution of the gains from what growth we have is a growing challenge. These are harsh times.”

Esta falta de crescimento, a quebra das expectativas relativas à evolução do nível de vida e a percepção de que as vantagens da globalização estão mal distribuídas tem contribuído, e muito, para o crescimento de diferentes populismos dos dois lados do Atlântico. No El Español, o politólogo Christian Demuth escreve precisamente sobre este tema em Receta para aprender del éxito del populismo en Europa. Há uma passagem, relativamente à forma como hoje se faz política, aparentemente sem qualquer emoção e com demasiados “esquemas”, passagem essa que me pareceu especialmente interessante: “Leonard Novy, profesor del Instituto para los Medios de Comunicación y la Comunicación Política de Berlín, constata que el día a día de los políticos tradicionales les ha hecho olvidarse de la emoción. “Los partidos tradicionales son víctimas de usar márquetin político, centrándose en crear argumentos buenos para determinados sectores de la población, usando demasiado poco la emoción en política”, apunta Novy a este periódico. Con él coincide Demuth, quien está convencido de que los partidos “han de ofrecer ofertas emocionales y no sólo elaborar documentos con propuestas políticas inteligentes”. Según Novy, los populistas están prácticamente “monopolizando” las emociones en política.”

Termino este bloco de recomendações internacionais como uma chamada de atenção para um magnífico texto do escritor marroquino Tahar Ben Jelloun, Lettre aux Musulmans, a que tive acesso através do Le Site Info. Não é possível sintetizá-lo neste espaço, vale a pena conhecê-lo na íntegra, como verificarão lendo esta passagem: “Si l’Europe nous a accueillis, c’est parce qu’elle avait besoin de notre force de travail. Si la France a décidé le regroupement familial en 1975, c’est pour donner à l’immigration un visage humain. Alors, il faudra nous adapter aux lois et droits de la république. Nous devons renoncer à tous les signes provocants d’appartenance à la religion de Mahomet. Nous n’avons pas besoin de couvrir nos femmes comme des fantômes noirs qui font peur aux enfants dans la rue. Nous n’avons pas le droit d’empêcher un médecin homme d’ausculter une musulmane. Nous n’avons pas le droit de réclamer des piscines rien que pour des femmes. Nous n’avons pas le droit de laisser faire des criminels qui ont décidé que leur vie n’a plus d’importance et qu’ils l’offrent à Daech.”

Palavras importantes e palavras raras. Com elas vos deixo à entrada deste primeiro fim-de-semana de Agosto, com votos de bom descanso, sobretudo se estiverem de férias. Onde, espero, também tenham mais tempo para boas leituras. Até para a semana.

 
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