Sento-me ao computador depois de ter atravessado Lisboa com o termómetro do carro a marcar mais de 30 graus e as obras da câmara me terem feito perder mais tempo do que desejaria. Fico a saber que, afinal, o calor de hoje parece que não vai querer nada com o fim-de-semana, mas que mesmo assim a Primavera não se irá embora. Olho para a folha em branco, recordo tudo o que fui deixando para trás numa semana que foi muito intensa aqui no Observador – há sempre mais excitação quando se celebra um aniversário, e nós celebrámos na quinta-feira dois anos de vida – e decido que não devo ficar apenas por um tema central, antes alargar o âmbito das sugestões. Arrumando-as o melhor possível
O domingo em que vamos estar a olhar para a Áustria
É já domingo, 22 de Maio, que os austríacos voltam às urnas para a segunda volta das eleições presidenciais. O favorito é o candidato do FPÖ, de extrema-direita, que recolheu mais votos na primeira volta e surge à frente nas sondagens. É mais um populista a chegar ao poder (ou a aproximar-se dele), pelo que inicio este primeiro bloco de sugestões com uma longa reportagem da Spiegel onde se procura compreender como é que a Áustria está à beira de eleger um Presidente de extrema-direita. Em Rise of the Populists: Austria a Step Ahead in Europe's Race to the Right, uma reportagem em que colaboraram quatro jornalistas, nota-se que “The setbacks for the ÖVP [cristãos-democratas] and the SPÖ [sociais-democratas] have been dramatic. Into the 1970s, the two parties enjoyed four times the support they did in the first round of this year's presidential elections, with the SPÖ experiencing a brief period during which it received over 50 percent of the vote. These days, though, three out of four blue-collar workers in the country cast their ballots for the FPÖ. The right-wing populists are even ahead among labor union members.”
A hipótese da extrema-direita vencer na Áustria levou Francisco Assis a recordar, no Público, um grande escritor desse país: O mundo de ontem e o de hoje - Stefan Zweig e a doença populista à nossa volta. É um texto onde considera que “A Europa está de novo confrontada com velhos demónios conhecidos. O seu lado luminoso, o “mundo de ontem” de Stefan Zweig, só poderá continuar a ser o nosso “mundo de hoje” se ousarmos enfrentar corajosamente a doença extremista e populista que está a crescer à nossa volta.”
Para enfrentar os populismos é necessário compreender as suas raízes, pelo que depois de já aqui ter referido um texto recente de Rui Ramos onde este discute a relação da sua ascensão com os efeitos da globalização – A revolta contra a globalização – devo referir hoje a reflexão de José M. Brandão de Brito, Chief economist do Millenniumbcp, no Jornal de Negócios: Globalização e populismo. Pequeno extracto: “A combinação de desemprego, com empobrecimento das classes médias, alienação dos jovens e aumento da desigualdade são razões bastantes para justificar a deriva política nos EUA e em quase todos os países da Europa. Se é certo que a globalização beneficia o povo em geral, não é menos verdade que também introduz incerteza e prejudica poderosos interesses instalados. Foi a tentativa da mitigação desses efeitos que semeou o fruto da frustração política que está a fomentar a ascensão do populismo nas democracias ocidentais.”
É contudo importante referir que para enfrentar a ascensão do populismo a política não pode deixar-se reduzir à dimensão tecnocrática de lidar com a dívida e o défice, deve oferecer algo mais. É isso mesmo que defende Miguel Angel Belloso, diretor da revista espanhola Actualidad Económica, no Diário de Notícias, em A força das ideias, um texto em que critica o líder do PP espanhol por entender que este não está a fazer o suficiente para se opor ao crescimento do populismo de esquerda do Podemos. E lembra um bom exemplo do passado_ “Quando Margaret Thatcher foi eleita primeira-ministra do Reino Unido propôs-se em primeira instância acabar com as greves que flagelavam o país, combater a inflação e assentar as bases para o crescimento. Mas o seu objetivo final era bastante mais genuíno e estratégico. Propôs-se mudar a mentalidade das pessoas, durante tantos anos corrompida por um socialismo que alimenta a mediocridade. Devolver-lhes a sua autoestima, a confiança em si mesmas. A Espanha atual, o Portugal do século XXI, necessitam de uma terapia liberal que abra as janelas de umas estruturas anquilosadas e fechadas aos ares da renovação, e que permita expandir a energia criadora dos cidadãos.”
A semana em que fomos avisados pela Comissão Europeia
Já ontem aqui referi algumas leituras sobre a decisão da Comissão Europeia de adiar uma decisão sobre as sanções a Portugal, assim como à forma como António Costa reagiu, pelo que hoje vou apenas referir alguns textos que ajudam a pensar sobre a situação em que nos encontramos.
Há um primeiro texto cuja leitura recomendo vivamente, pela sua frontalidade e pela clareza do diagnóstico: Os filhos da adesão, de João César das Neves no Diário de Notícias. A geração a que se refere é a que tem hoje mais ou menos 30 anos, uma geração que mais do que sentir a crise, se depara com a falta de esperança no futuro. E estamos assim porque “a principal responsabilidade pertence-nos a nós, os pais deles. Foi a minha geração quem criou a crise, e disso nada nos pode desculpar. Fizemo-lo com dois erros. (…) Além de endividar o país, a minha geração também blindou os seus direitos insustentáveis em leis, regulamentos e instituições. Sucessivos governos atribuíram aos cidadãos inúmeras benesses, alegadamente universais. Só que, com o fim do endividamento, a segurança no emprego, pensões generosas e outros privilégios acabaram atribuídos apenas aos que as conceberam. Os jovens de hoje sabem que não poderão gozar daquilo que os seus pais tiveram. (…) Além das benesses, Portugal foi adoptando leis de país rico, que a produtividade não suporta. Imposições de toda a ordem sobrecarregam as empresas, prejudicam a competitividade e alimentam exércitos de fiscais, funcionários e advogados.”
Sou da mesma geração de João César das Neves, tenho filhos da mesma idade dos dele e partilho muito deste diagnóstico. Sobretudo partilho a ideia de que estamos a deixar um Portugal onde garantimos para nós mais direitos do que alguma vez os nossos filhos terão. Por isso deixem-me acrescentar mais duas reflexões que vêm bem a propósito:
- Birras perigosas, de Pedro Braz Teixeira, no Jornal I: “É evidente que a CE não quer aplicar sanções, como já em 2002 evitou aplicá-las a França e Alemanha. Bruxelas teme, com razão, os resultados das eleições espanholas e o referendo de junho no Reino Unido, onde o sentimento antieuropeu impera. No entanto, não pode aceitar a inação do governo português. A birra absurda de António Costa, como antes a birra de Sócrates, tem todas as condições para sair caríssima ao país.”
- A luta continua, de Rui Ramos, no Observador: “No Outono passado, o PCP não podia permitir que a governação da direita se prolongasse. A erosão dos sindicatos era demasiado grave (menos 10% de filiados desde 2012). Mas também não pode deixar, como não deixou até agora, que alguma réplica nacional do “Podemos” o ultrapasse na contestação à “austeridade”. Por isso, apesar da aparente concessão de António Costa no caso das 35 horas, a “luta continua”. O horário dos funcionários, seja ele qual for, é, para o PCP, menos importante do que as greves, os plenários, e as manifestações em que usa esses funcionários para ocupar o espaço público: “a luta é o caminho”.
A liberdade, sempre a liberdade
Fui surpreendido hoje de manhã, ao ler a crónica de Francisco Teixeira da Mota no Público, Relação de Lisboa ressuscita delito de opinião, que um ex-militar foi condenado por chamar traidor a Alegre. A decisão de dois juízes do Tribunal da Relação de Lisboa deixou o colunista (insuspeito de simpatias pelas ideias do ex-militar) justamente indignado: “Os mencionados desembargadores, lamentavelmente, dando um enorme valor à pretensa honra do socialista e desprezando a liberdade de expressão do reaccionário, condenaram o militar, já que imputar a uma figura pública, candidato a Presidente da República, o crime de traição à Pátria é ofensivo da honra e consideração do visado, atingindo a sua dignidade pessoal e o núcleo essencial das suas qualidades morais e éticas.”
Sinto-me assim obrigado a regressar ao tema e à ideia de liberdade, até porque tenho dois textos interessantes para vos sugerir. O primeiro retoma um tema já várias vezes abordado aqui no Macroscópio, o do ambiente censório que se vive em muitos campus universitários, em especial nos Estados Unidos. No Wall Street Journal, Michael Bloomberg e Charles Koch escreveram Why Free Speech Matters on Campus onde, depois de darem exemplos inquietantes do que se está a passar – “The University of California considers statements such as “America is the land of opportunity” and “everyone can succeed in this society, if they work hard enough” to be microaggressions that faculty should avoid. The roll of disinvited campus speakers in recent years continues to grow, with the Foundation for Individual Rights in Education identifying 18 attempts to intimidate speakers so far this year, 11 of which have been successful. The list includes former Secretary of State Madeleine Albright” – concluem: “’Safe spaces’ will create graduates unwilling to tolerate differing opinions—a crisis for a free society.”
Este texto, e esta relação entre liberdade e “espaços seguros”, levou-me a recuperar um texto já com pouco mais de uma semana, saído na Tablet, onde o antigo dissidente soviético Natan Sharansky explica Why Political Prisoners Matter. Escrito a propósito da passagem do 40º aniversário da criação do Grupo de Helsínquia, recorda as discussões políticas da época, nomeadamente com os pacifistas que pareciam dispostos a aceitar render-se a um regime totalitário em vez de lhe fazer frente. Gostei bastante desta passagem: “The highest human value is not peace simply, but peace in conditions of freedom. If peace were the ultimate good, dictatorships would exist forever, because no one would endanger his life fighting for basic rights. (…) The Soviet Union could sign all the treaties in the world while continuing to send its tanks to Prague, its missiles to Cuba, and its paratroopers to Afghanistan. External aggression is part of such regimes’ DNA, an outgrowth of their complete intolerance for internal freedom and dissent. As Andrei Sakharov liked to say: You cannot trust a government more than that government trusts its people.”
Outros regimes, tempo de recordar e aprender
Esta recordação da União Soviética, e de quem a combateu, leva-me a outros artigos, dois deles num registo mais próximo do fim-de-semana, mas mesmo assim muito pertinentes. O primeiro saiu no Moscow Times e no Guardian e fala-nos do pequeno exército de cientistas que trata de manter em condições o corpo embalsamado de Lenin. Em Lenin Lab: the team keeping the first Soviet leader embalmed (ou In the Flesh: Russian Scientists Work to Preserve Lenin's Corpse) Daria Litvinova conta-nos como “Since 1924, a group of scientists has been tasked with maintaining the body. At the peak of its activity during Soviet times, the “Lenin lab” had around 200 specialists working on the project, according to Yurchak. Today, the group is much smaller, but the work has hardly changed. Every few days scientists visit the mausoleum to check on the body, where it is preserved under carefully calculated temperature and lighting, and every 18 months Lenin is taken to a lab beneath the dimly-lit viewing room to be re-embalmed and washed.Though scientists have managed to preserve Lenin’s skeleton, muscles, skin and other tissues, all his internal organs have been removed. His brain was taken out to be examined by the Soviet “Brain Institute”.
Lenine não é única divindade comunista a ter o seu corpo embalsamado em exposição pública num mausoléu construído na principal praça da capital que um dia governaram. O mesmo sucede com o corpo de Mao, o antigo ditador que as autoridades chinesas não se atrevem a contestar mesmo quando, como sucedeu esta semana, criticam a sua última loucura, a Revolução Cultural. Já aqui referi a passagem do 50º aniversário dessa verdadeira catástrofe, mas volto ao tema para referir outro livro, The Cowshed: Memories of the Chinese Cultural Revolution, de Ji Xianlin, que é um testemunho único sobre o que se passou naqueles anos. É assim que o Financial Times se lhe refere em China’s Cultural Revolution: “The Cowshed ends up complicating any notion of a simple divide between victims and perpetrators, and presents devotion to the revolution as carrying a weight in Mao’s China akin to that found among believers swept up in a millenarian religious revival. In trying to understand the Cultural Revolution, Ji’s soul-searching memoir suggests, we should remember that teenage Red Guards, born around 1949, had spent their whole lives being told that earlier generations had fought epic battles against monstrous enemies to save China. Their attacks on people like Ji were, in part, a warped effort to do something similar and thereby prove their patriotism and self-worth.”
Ainda sobre a Revolução Cultural, este aniversário foi também tema do Conversas à Quinta desta semana, Como a Revolução Cultural apaixonou os intelectuais e quase destruía a China, tendo Jaime Nogueira Pinto e Jaime Gama debatido não apenas o que se passou na China, mas o fascínio que o maoismo suscitou em muitos jovens e intelectuais do Ocidente.
Vem por isso também a propósito referir a mais recente crónica de Maria João Marques aqui no Observador, não por esta escrever sobre a China – uma das suas áreas de interesse –, mas pela crueza com que recorda a quem de direito o que se tem passado na Venezuela em Panama papers: o fim do socialismo (se fôssemos inteligentes): “Como se vê, corre sempre tudo bem nas experiências socialistas, lideradas por esses semideuses que são os políticos amigos dos pobres. A Venezuela está finalmente liberta da tirania dos luxos capitalistas (aquilo que por cá chamamos bens de primeira necessidade). Estou certa que a comunicação social não deixará de pedir comentários ao BE e a Louçã sobre os bons sucessos daquele país. Afinal BE e Louçã nem andam escondidos, até apoiam o (des)governo.”
E, claro, fizemos dois anos!
Como todos sabem, editámos uma revista especial em papel comemorativa do nosso 2º aniversário, uma revista onde reunimos alguns dos nossos melhores textos mas não só (espero que já a tenham ido comprar, porque vale muito a pena e suspeito que se tornará numa peça de colecção…). Nessa revista também publicámos uma entrevista feita especialmente para esta edição, pela Filomena Martins, que foi a Madrid falar com o enfant terrible da imprensa espanhola, o jornalista que começou no ABC, deu dimensão ao Diario 16 e fundou o El Mundo, somou polémicas, foi demitido e acabou de criar o El Español, um jornal exclusivamente online como o Observador. Pedro J. Ramírez: “Até 2020, a maioria dos jornais deixará de imprimir” ele explica qual a sua visão do futuro: “O meu prognóstico é que até ao final desta década, até 2020, a maioria dos jornais deixará de imprimir. Se houver alguma edição impressa em Espanha, será residual. Quando era diretor do El Mundo havia quatro jornais com vendas nacionais de mais de 100 mil exemplares e dois com vendas de mais de 200 mil. Agora só há um, o El País, com mais de 100 mil, que dentro de um ano ou dois baixará desse número. Não ficará nenhum jornal que venda mais de 100 mil cópias nos quiosques num país de 45 milhões de habitantes. Isso é insustentável! Do ponto de vista dos custos, da distribuição… Os jornais tradicionais teriam de custar dez euros para poderem sobreviver!”
Agora chega, que esta sexta-feira já me estendi demasiado. Tenham um bom fim-de-semana, que nos reencontramos segunda-feira. Até já.
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