quinta-feira, 3 de março de 2016

OBSERVADOR - 3 DE MARÇO DE 2016

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Macroscópio – Ainda vale a pena ler jornais (incluindo os online)?

Para: antoniofonseca1940@hotmail.com


newsletters@observador.pt

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!


O ponto de partida deste Macroscópio é uma pergunta que contém uma provocação. De alguma forma quero pensar que esta newsletter, ao seleccionar diariamente artigos que merecem ser lidos um pouco de toda a imprensa, contem a resposta à pergunta: “sim, ainda vale a pena”. Porém trata-se de uma provocação que foi suscitada por uma outra provocação, esta lançada à cara de todos os jornalistas portugueses por Ferreira Fernandes, na sua coluna no Diário de Notícias Dolorosa revista de imprensa.

A história que aí se conta são… duas. A primeira é a de Keith Heaviside, 83 anos, que “durante os seus últimos 20 anos, com chuva ou sol, seis dias por semana (folgava ao sábado), atacou a encosta do Roseberry. Até ao cume.” Não era um cume muito alto (319 metros), mas a história dessa sua rotina deu, a propósito da morte daquele habitante do North Yorkshire, uma bela peça jornalística no Times de Londres. Ferreira Fernandes deliciou-se. E depois notou que "Esta semana amputaram um pé a Vicente Lucas", o defesa da selecção portuguesa no Mundial de 1966, “O homem que Pelé considerou o melhor defesa que o marcou.” Mas notou mais: notou que “os jornais deram a notícia do pé: publicaram duas linhas do comunicado do clube, o Belenenses.” E foi tudo.

Ferreira Fernandes lamentava, no fundo, a inércia e a rotina que marcam muita da nossa imprensa, e nesse ponto foi certeiro, mas a verdade é que continuamos a encontrar nela boas histórias, daquelas que merecem ser lidas. Daquelas que nos ajudam a reflectir.

Ontem o Observador publicou uma dessas histórias. Partindo das declarações controversas da bastonária da Ordem dos Advogados sobre a prática de eutanásia nos hospitais, a Sónia Simões e a Marlene Carriço foram falar com médicos e enfermeiros um pouco de todo o país e o resultado é um daqueles trabalhos que nos obrigam a pensar: Sim, dá-se morfina a doentes terminais. E não, isso não é eutanásia. É que a realidade é por regra mais complexa do que muitos imaginal, os dilemas morais são mais complexos, os dramas pessoais exigem quase sempre atenção ao detalhe, não ao simples estabelecimento de um regra. Começa assim: “Não vale a pena fintar a morte. Quando o diagnóstico diz que o tratamento médico já é ineficaz, que a morte se aproxima e não é possível contorná-la, o objetivo dos médicos e dos enfermeiros é aliviar ao máximo a dor do paciente. E isto “não é matá-lo, é permitir uma morte mais natural quando esta tiver que acontecer”, explica ao Observador a enfermeira Ana Paula Sapeta.”

Uma outra história com pessoas dentro, mesmo que mais longe das polémicas dos dias que correm, é a de Christiana Martins, que regressou a Entre-os-Rios para ver como estava a terra onde, faz hoje 15 anos, a queda de uma ponte levou consigo 59 vidas. EmFlores voltam a ser atiradas para o rio Douro (paywall) recorda não só o que se passou, como nos diz o que mudou, como nos faz o retrato de gente que viveu a tragédia – até das formas mais inesperadas. Como esta: “Mas há quem seja futuro. Ana Leonor foi a primeira criança a nascer na freguesia de Raiva depois da tragédia. A mãe estava grávida quando tudo aconteceu. Teve de ser vigiada e quando sofreu um sangramento e precisou de ser levada de urgência para o hospital, não havia ponte. Passaram o rio num batelão. “A minha filha é o símbolo do ciclo natural da vida. Depois da morte da minha mãe e do meu irmão, surgiu algo novo, algo que todos nós procurávamos”, desabafa Augusto Moreira.

Mas nem só de boas histórias se faz a imprensa, ela é também a Ágora dos nossos dias, a praça virtual onde nos encontramos para discutir ideias. E, sobre ideias, também há alguns textos que gostava de destacar dos publicados nas últimas horas:
  • No Público, Francisco Assis procura responder a uma pergunta que muitos fazem: O que se está a passar na América? A propósito desta pergunta, que também era a do Macroscópio de ontem, faz algumas reflexões interessantes, nomeadamente sobre as redes sociais: “A proliferação das redes sociais tem vindo a alterar significativamente a natureza e os termos em que decorre o debate público, estimulando formas de representação mental e apelando a práticas linguísticas pouco propícias a um ambiente de moderação e decência, imprescindível para a sanidade da controvérsia política. (…) [É necessário] estabelecer um campo de discussão relativamente permeável às ideias adversas e marcado pela preocupação de atribuir a devida solidez à argumentação própria – precisamente o contrário da gritaria, do insulto soez, dos métodos primários de persuasão que hoje ocupam praticamente toda a esfera pública. Os resultados estão à vista.” Também já falámos deste tema esta semana, a propósito da polémica sobre o livro de Henrique Raposo.
  • No Observador, a historiadora Maria de Fátima Maldonado procurar ler os dilemas do PCP no actual momento político, um momento político com características novas para os comunistas. Em A “Geringonça Triple A” considera que “O PCP pura e simplesmente não dispõe de ferramentas para entender o novo mundo globalizado em que se atreveu a meter o pé com esta preliminar e tímida experiência de colaboração condicional com um PS subordinado à lógica populista do Bloco de Esquerda. Não entende sequer as mais elementares regras do euro, decorrentes da correlação entre crescimento económico e deficit orçamental.”
  • No Diário Económico Vital Moreira foi mais um a juntar-se à discussão sobre o futuro da ADSE, com uma posição algo diferente das mais correntes. Em O problema da ADSEdefende, por exemplo, que “Além de facultativa, a ADSE tem mais duas características que a tornam financeiramente pouco viável a prazo: a contribuição é proporcional às remunerações ou pensões, o que quebra a equação individual entre custos e benefícios; e faltam mecanismos para adequar as contribuições aos diferentes riscos de saúde dos beneficiários. Ambos os fatores tendem a prejudicar os maiores contribuintes com menos necessidades de cuidados de saúde, levando à sua saída.”
  • Termino a minha selecção de hoje com um texto, sempre polémico, de João César das Neves no Diário de Notícias,Costa, Afonso Costa, onde compara a forma de actuar de António Costa com a de Afonso Costa, o chefe dos republicanos no período da I República, e em particular a forma como este envolveu o país, por cálculo político, no desastre da I Guerra Mundial. Eis uma passagem: “As tolices acumulam-se enquanto os sinais económicos pioram, perante a apatia dos governantes, distraídos com futilidades. Tivemos governos muito maus nestes cem anos, mas o actual inclui tiques e traços que não víamos desde os tempos de Afonso Costa. Entretanto, como há um século, os dirigentes põem a sua confiança em fábulas maravilhosas, como o crescimento por via do consumo, quando poupança e investimento estão em mínimos históricos, o crédito bancário continua a cair, a confiança dos credores internacionais é descartada e fervilha nova recessão europeia. Seria cómico se não fosse trágico.”

Tinha aqui mais algumas boas sugestões da imprensa internacional, alguns textos que nos ajudam a pensar sobre debates nacionais, mas fico-me por um só referência, até porque essa me permite regressar ao papel da imprensa. Agora, porém, a nota é mais negativa: de acordo com a revista alemã Spiegel nunca a confiança do público no que contam os jornais e televisões foi tão baixa. Em Lying Press? Germans Lose Faith in the Fourth Estate conta-se como a crise dos refugiados criou uma situação de divórcio entre o público e os órgãos de informação, que muitos acusam de não contarem toda a verdade. A revista pede então aos jornalistas para olharem para o que se passou o Verão passado, quando de repente, por causa dos refugiados e das palavras de Merkel, todos começaram a dizer bem da Alemanha:
In those days, this different Germany was the big news story. And like every big news story, it outshone everything else. Perhaps it would have been asking too much of the media to immediately interject the critical question of whether all of this could work. Even journalists do not live outside their own time, nor are they immune to the public mood. Reporters also have their own expectations and fears, political convictions and moral values. It is important for journalists to keep reminding themselves of this. Only then can they ensure it doesn't distort their view of reality or bias their reports. Only then can they see when too few critical questions have been asked and take action to rectify it. Most of all, journalists must constantly allow themselves and their work to be questioned -- by themselves, colleagues and their audience. 

Este último conselho é, julgo, especialmente pertinente. E não apenas na Alemanha. A imprensa continua a ser muito importante, e é verdade que a crise da imprensa não é apenas económica, é também do tipo de jornalismo que se pratica em demasiadas redações. Por isso aqui fica este Macroscópio, mostrando como nem tudo é péssimo, mas também nada, nem os melhores trabalhos jornalísticos, autorizam qualquer complacência.

Tenham bom descanso, reencontramo-nos amanhã.

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