Macroscópio – Hepatite C e medicamentos inovadores. A vida tem preço?
Macroscópio – Hepatite C e medicamentos inovadores. A vida tem preço?
Momentos de grande emoção, como os que vivemos esta semana no Parlamento durante a audição ao ministro da Saúde, não são propícios a uma discussão informada e serena. No entanto essa discussão tem de existir – essa discussão já começou mesmo um pouco por todo o mundo desenvolvido, mas com pouca visibilidade pública: saber como aplicar da melhor forma os recursos disponíveis para a saúde num tempo em que esta tem custos crescentes por razões tecnológicas e razões demográficas.
É essa a discussão que o preço de fármacos como o sofosbuvir suscita, ou devia suscitar. É, de resto, uma discussão que não se limita a Portugal. Em Espanha também tem havido manifestações de doentes com hepatite C e não é difícil encontrar nos jornais artigo onde se discute o preço desse medicamento. Artigos como este, do El Pais: El equilibrio entre coste y beneficio de los fármacos de la hepatitis C. O teor do debate político é muito semelhante ao português: “El nuevo ministro de Sanidad, Alfonso Alonso, ha heredado el problema de su antecesora, Ana Mato, y se ha visto obligado a poner en marcha un comité de expertos y un plan nacional para tratar de dar respuesta a las mediáticas protestas de los afectados, que piden tratamiento para todos con los nuevos y caros fármacos de última generación. Acusan al Gobierno de dejarles morir por una cuestión económica.” Mas mais adiante reconhece-se que “Idealmente, si el tratamiento costara como una aspirina, todos los pacientes podrían beneficiarse. Sin embargo, debido a su elevado coste, los expertos coinciden en que deberán administrarse de manera gradual. Como ocurre con todos los tratamientos innovadores, los primeros en recibirlos son los pacientes más graves.”
O custo é de facto um problema, mesmo em países com mais recursos do que Portugal. Um problema que pode mesmo levar ao adiamento da utilização do sofosbuvir, como sucedeu no Reino Unido, país que tem um Serviço de Nacional de Saúde que segue princípios muito semelhante ao nosso. Como noticiava o Guardian há menos de um mês, a 16 de Janeiro, Hepatitis C drug delayed by NHS due to high cost. Eis as contas que lá se fazem: “But NHS England appears to be balking at the bill for the drug, which would hit £1bn for every 20,000 people treated. Approximately 160,000 people in England alone are infected with hepatitis C, although fewer than half are aware of it.”A mesma notícia também dava conta da preocupação noutros países, dos Estados Unidos à Índia: “Campaigners are pressing for lower prices, from the US – where it costs $1,000 a pill – to India, in a fight which they liken to that over drugs against another virus: HIV, which causes Aids. On Wednesday, they celebrated a decision by the Indian authorities not to allow a patent application for sofosbuvir by Gilead, the manufacturer, which means Indian companies may be able to make cheap copies for the developing world.”
O mesmo Guardian já tinha de resto noticiado os esforços da Organização Mundial de Saúde para tornar o medicamento mais acessível: WHO calls for access to hepatitis C drugs. Eis uma passagem do comunicado da OMS que situa bem o problema: “Hepatitis C treatment is currently unaffordable to most patients in need. The challenge now is to ensure that everyone who needs these drugs can access them. Experience has shown that a multi-pronged strategy is required to improve access to treatment, including creating demand for treatment. The development of WHO guidelines is a key step in this process.”
Mas regressemos a Portugal para, rapidamente, situar o debate desta semana. A notícia que concentrou todas as atenções foi a da morte de uma mulher de 51 anos. Foi primeiro divulgada pelo Público ao fim do dia de terça-feira, e continua a ser a melhor exposição do que se passou nesse caso: Doente de 51 anos morre à espera de medicamento inovador para a hepatite C. No dia seguinte o ministro esteve no Parlamento e o tema dominou a audição, como o Observador noticiou. A tensão política subiu e o acordo entre o Estado e a farmacêutica, que estava há muito a ser negociado, acabou por ser finalizado apenas 24 horas depois do debate parlamentar. Hoje o ministro e o presidente do Infarmed reuniram-se com os jornalistas, tendo Paulo Macedo garantido que “fez o melhor acordo de todos”.
Quando tudo parece acabar bem tendemos a colocar uma pedra sobre o assunto. Esse é um comportamento que procurei contrariar no texto que escrevi para o Observador, Que se pode dizer a um filho que viu a mãe morrer? Nesse texto defendi a ideia de que temos de regressar a um debate que foi muito maltratado há dois anos, o dos critérios de racionalidade – e de racionamento – na utilização dos recursos disponíveis para a Saúde. Para os mais esquecidos foi o debate que não houve – só houve escândalo e indignações – quando o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida produziu um parecer sobre o tema. Na altura ainda não existia o sofosbuvir, pelo que esse parecer centrou-se num pedido do Ministério da Saúde para que essa comissão desenvolvesse uma “fundamentação ética para o financiamento de três grupos de fármacos, a saber retrovirais para doentes VIH+, medicamentos oncológicos e medicamentos biológicos em doentes com artrite reumatoide.” Apesar de muito vilipendiado por gente que até admitia publicamente nem sequer o ter lido, esse documento do CNECV continua a ser uma peça fundamental em qualquer debate.
Também é importante ler o ouvir Pedro Pita Barros, um economista que se especializou na área da Saúde. No seu blogue Momentos Económicos escrevia ontem, em o regresso aos “casos” da saúde, que “A necessidade de se encontrarem mecanismos para que as negociações de preços de novos medicamentos não se traduzam em situações dramáticas para os doentes é clara. Mas algumas das soluções sugeridas e tentadas noutros países, como a criação de fundos especiais de acesso, estão a ser reavaliadas (como o Cancer Drug Fund no SNS inglês), pois não vão ao elemento central do tema – como se reparte o valor gerado pela inovação entre as empresas e os pagadores.”
Não é a primeira vez que Pedro Pita Barros reflete sobre estes assuntos. No passado mês de Outubro deu uma entrevista ao Observador que partia precisamente da pergunta a que importa tentar responder: Podemos pagar os custos da saúde que não tem preço? A sua ideia é que, poder, podemos, “Mas há que fazer escolhas. Fazer de conta que as escolhas não existem é apenas uma forma de nos iludirmos.” Foi em torno da discussão sobre o tipo de escolhas que estão em cima da mesa que essa entrevista decorreu.
Continuando com Pedro Pita Barros, remeto-vos para um texto mais antigo e mais exaustivo e sistematizado, já com mais de dois anos, escrito para a revista XXI, Ter Opinião, da Fundação Francisco Manuel dos Santos – Racionamento em Saúde: Inevitável realidade – Contenção da despesa em tempos de escassez. Nesse texto ele explica com detalhe não só porque o debate é inescapável, mas também porque é extremamente difícil. Vamos pensar num só desses problemas: como avaliar os benefícios líquidos das escolhas que se fazem em Saúde? Eis como ele coloca o problema (e peço desculpa pelo tamanho da citação):
O objectivo de maximizar os benefícios líquidos não tem em conta a distribuição desses mesmos benefícios pelas diferentes pessoas. Por exemplo, de forma a maximizar o bem-estar social, a escolha de distribuição dos recursos por grupos de idades diferentes diz-nos que se deve atribuir prioridade às populações mais jovens, uma vez que, em média, o benefício de receber tratamento é maior (maior longevidade obtida) e a contribuição para a sociedade (em termos económicos) é maior. No entanto, o juízo da população em geral é de que não deveria ser negado tratamento aos idosos simplesmente pela idade. Por outro lado, houve quem já argumentasse que em termos éticos se deve olhar para o que a sociedade pretende assegurar a cada pessoa. Se for aceite o princípio de que todos têm direito a pelo menos um determinado número de anos de vida de perfeita saúde (por exemplo, 80 anos, estando perto da esperança média de vida actual), então decorre desse princípio que em caso de ser necessário escolher, um jovem de 30 anos deverá ter precedência no tratamento face a uma pessoa de 87 anos. O motivo não tem em conta qualquer aspecto económico. O cidadão de 87 anos já viu garantido pela sociedade o direito ao número de anos de vida, enquanto o jovem ainda não. Será este argumento ético suficientemente forte para a sociedade portuguesa? Ou existe uma preferência por tratar de acordo com a necessidade no momento de ocorrência, e nesse caso ter o risco de não tratar quem chegar mais tarde por não existirem recursos?
Felizmente que, apesar da dificuldade do tema, este começa a ser abordado mais abertamente, e não só para o caso da hepatite C. Esta semana, a propósito do Dia Mundial do Cancro – outra doença onde o custo dos tratamentos inovadores pode ser astronómico, na casa das centenas de milhares de euros – o jornal I publicou um trabalho intitulado Cancro. O que fazer quando os preços dos medicamentos são demasiado altos. Pequena passagem:
Há 21 medicamentos inovadores a aguardar aprovação para uso no SNS nesta área. Em estudo são mais de 100 moléculas. Depois de um pico de despesa de 230 milhões em 2011, no ano passado terá ficado pouco acima dos 200. “A crise serviu um pouco para atenuar o crescimento da despesa e deu ao ministério alguma facilidade negocial, mas a longo prazo é insustentável”, insiste Nuno Miranda [director do Programa Nacional para as Doenças Oncológicas], duvidando que seja possível o país resolver o problema sozinho. “Ou não se dá, ou cortamos noutro lado, ou aumentamos impostos ou geramos dívida como temos feito, que é estar a tratar as nossas doenças com o dinheiro dos nossos filhos. Isto não é um problema da crise mas de sistema e enquanto olharmos para isto e dissermos que não somos gregos não vamos lá e temos o risco de desigualdades entre doentes.”
Temas difíceis, como se constata, e que não podem ser resolvidos apenas com tiradas populares sobre “a vida não tem preço”. O preço que não tem é o custo das opções. E estas devem ser abertamente discutidas, não remetidas ao silêncio do interdito.
Bom fim-de-semana, bom descanso e, claro, boas leituras.
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ANTÓNIO FONSECA
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