Sócrates e justiça: uma guerra que vem desde o dia zero do governo
Uma das teorias da conspiração em curso é que Sócrates está hoje preso porque sempre foi odiado pelas magistraturas. Como em qualquer teoria da conspiração, metade dos factos são verídicos: o conflito entre José Sócrates e os magistrados vem do dia em que, na apresentação do programa do governo, Sócrates anunciou a intenção de reduzir as férias judiciais de dois meses para um mês. Estávamos em Maio de 2005. "Com esta medida", disse na Assembleia da República, "centenas de milhares de processos deixarão de estar literalmente parados por um tão largo período de tempo, o que será, não tenho dúvidas, um contributo para uma maior celeridade processual."
Caiu de imediato o Carmo e a Trindade entre os representantes do sector. A Associação Sindical dos Juízes (ASJP) reagiu mal, afirmando que as "férias judiciais, exibidas como suposto privilégio dos juízes, são reduzidas, contra a opinião unânime dos profissionais do foro. Mas o governo é incapaz de explicar porque não acaba de vez com elas, tal como sugeriram as magistraturas e o funcionalismo judicial". Justificando querer uma justiça "mais célere", Sócrates acabaria por dar a entender para a opinião pública que as magistraturas gozavam de um maior período de férias que qualquer cidadão funcionário público. A estratégia de Sócrates nesse tempo era impor-se como "o reformista" que tem "coragem para atacar os interesses instalados".
As associações dos profissionais do sector tiveram de vir a público esclarecer que "o período de suspensão da actividade dos tribunais para os actos processuais não urgentes, designado de férias judiciais, nada tem a ver com a duração das férias profissionais dos juízes, dos procuradores ou dos funcionários, que é apenas, como sempre foi, o legalmente previsto para todos os funcionários do Estado".A relação entre o novo primeiro-ministro Sócrates e os magistrados começa logo sob uma enorme crispação. A relação com o primeiro ministro da Justiça, Alberto Costa, virá a ser sempre muito difícil. As coisas desanuviam um bocadinho quando Alberto Martins é nomeado ministro e o governo recua na questão das férias judiciais - suspendendo os prazos processuais na última quinzena de Julho e "aumentando" as férias judiciais para mês e meio. "Aplaudo a decisão, que é fruto de ter um secretário de Estado [João Correia] que, como advogado, conhece muito bem os tribunais e a impossibilidade de haver só um mês de paragem", reagiu na altura o penalista Germano Marques da Silva.
Quando em 2007 o governo decide equipar os magistrados às outras carreiras da função pública, o confronto sobe de tom. António Cluny era presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público e, na altura, afirma que "igualar o que pela sua natureza constitucional não é igual é fazer tábua rasa da Constituição". E diz: "Noutras palavras - pronunciadas em tempos por alguns dos actuais responsáveis do governo - significa partir a espinha ao modelo constitucional de independência da justiça portuguesa, que, entre outros aspectos, assenta no facto de os magistrados não serem considerados funcionários dependentes do governo." Ao usar a expressão "partir a espinha", António Cluny está a fazer uma alusão a uma frase que chocou os magistrados: em conversas privadas que teve - mas que depois acabaram por ser transmitidas a alguns magistrados -, Sócrates terá admitido a intenção de "partir a espinha ao Ministério Público".
O Código de Processo Penal é aprovado em 2007 e depois é alvo de algumas modificações. Em 2010, António Cluny escreve contra a reforma da justiça penal, que teria em vista "primordialmente obstaculizar a investigação de factos relevantes na área da criminalidade económica e financeira que fragilizavam alguns agentes políticos" e também "visavam por omissão impedir a necessária reforma das fases de julgamento e recurso, de molde a dificultar o julgamento tempestivo desses mesmos factos, quando e se, finalmente, as investigações pudessem chegar a porto relativamente seguro".Os magistrados acusam Sócrates de querer interferir na justiça acusando-o de pretender "uma mudança de paradigma do direito e dos seus instrumentos de efectivação: os tribunais".
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José Sócrates arrasado pelo "Libération"
O jornal francês "Libération" arrasa José Sócrates num artigo publicado na edição desta quarta-feira sobre a detenção do ex-primeiro-ministro. No título, o jornal escreve:"Sócrates, a queda de um oportunista sem ideologia". Além disso, acusa Sócrates de ser um político "duvidoso", "sempre bordeline", "sanguíneo, autoritário e de estilo cintilante à la Sarkozy". O correspondente do "Libération" em Madrid expões as suspeitas que levaram à detenção de Sócrates e explica como "o modo de vida em Paris chamou a atenção da brigada financeira portuguesa", como o seu motorista "fazia regulares viagens Lisboa-Paris para lhe entregar grandes quantidades de dinheiro em cash" e como o seu amigo e empresário Carlos Santos Silva serviu de pivô num esquema de transferencias financeiras. O "apartamento no valor de 2,8 milhões de euros, a frequência de restaurantes de luxo e as escutas telefónicas fizeram o resto".
No artigo, é ainda referido como Sócrates destruiu o seu "retrato político bem merecido, de um cidadão honesto que serviu o seu país o melhor possível" e passou a ser o "líder duvidoso, esse produto mediático ou o politico Armani envolvido em vários escândalos dos quais conseguiu, de cada vez, escapar às garras da justiça".
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Sócrates ao PÚBLICO: “As imputações que me são dirigidas são absurdas, injustas e infundamentadas”
Preso preventivamente desde a noite de segunda-feira, 24, e detido para interrogatório nos três dias anteriores, José Sócrates, 57 anos, esteve em silêncio sobre o caso mais mediático do país - o seu - durante cinco longos dias. Nesta quarta-feira à tarde ditou, de uma cabine telefónica da prisão de Évora, onde se encontra desde segunda-feira, uma carta ao seu advogado, João Araújo, para entregar ao PÚBLICO.
Nela, invocando "legítima defesa", diz considerar "absurdas, injustas e infundamentadas" as acusações de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais que a justiça portuguesa lhe dirigiu. Nesse texto, de oito parágrafos, afirma que "este caso tem também contornos políticos”.
O texto começa por uma imagem que evoca o “ascetismo” filosófico: “Fora do mundo”, é como José Sócrates diz estar, há cinco dias. E logo avança para a sua primeira crítica - ao “crime” que diz estar a ser cometido, contra a Justiça e contra si. Para o ex-primeiro-ministro, esse crime tem um autor: a acusação, ou seja, o Ministério Público.
De seguida, Sócrates garante que, “em legítima defesa”, irá, “conforme for entendendo”, “desmentir as falsidades lançadas sobre mim e responsabilizar os que as engendraram”.
E é só no quarto parágrafo que aborda a questão essencial, e aquela porque aguardavam a maioria dos que seguem o seu caso. Ainda assim, Sócrates detém-se primeiro nos aspectos processuais - “A minha detenção para interrogatório foi um abuso e o espectáculo montado em torno dela uma infâmia” - para só depois falar da substância das acusações que sobre si recaem: “As imputações que me são dirigidas são absurdas, injustas e infundamentadas.” A escolha das palavras é esta. Depois dessa frase, Sócrates queixa-se da “humilhação gratuita” que sofreu com a decisão do juiz Carlos Alexandre de o colocar em prisão preventiva, uma medida de coacção que considera ser “injustificada”.
O texto tem, então, uma passagem quase sarcástica, aquela em que o homem que dirigiu o Governo durante sete anos, cinco dos quais com maioria absoluta, descobre “uma lição de vida” sobre o poder. O “verdadeiro poder - de prender e de libertar”. Neste texto, e nas circunstâncias que o produziram, é fácil encontrar figuras de estilo pouco habituais nos discursos políticos. O que dizer da frase, naturalmente dirigida aos que o prenderam, mas que parece ter uma ressonância quase pessoal, se lida por muitos dos que o acusavam de ser autoritário? “Não raro, a prepotência atraiçoa o prepotente.”
O final da declaração é guardado para marcar uma fronteira. “Este é um caso da Justiça e é com a Justiça Democrática que será resolvido.” Porém, Sócrates não deixa de ver aqui “contornos políticos” - mas não aprofunda o tema. A intenção torna-se clara a seguir. Sócrates agradece a solidariedade de amigos e camaradas. Mas exige que a política não se misture no seu caso. “Este processo é comigo e só comigo. Qualquer envolvimento do Partido Socialista só me prejudicaria, prejudicaria o Partido e prejudicaria a Democracia.” Assim, por esta ordem. Sócrates parece dizer que não é por nenhuma grandeza retórica que pede o afastamento do PS (ver pág.10), é porque a mistura, indesejada, entre o processo e o partido prejudicá-lo-ia, em primeiro lugar.
E no fim, uma frase que parece demonstrar o ânimo que nele têm visto, e sublinhado, os que o viram depois da detenção: do advogado, João Araújo, a Mário Soares e Capoulas Santos. Se tivesse reticências, no final, a frase soaria, quase, a bravata. Assim, é uma quase-constatação: “Este processo só agora começou.”
Para já, sai à liça o advogado que nesta quarta-feira anunciou, à agência Lusa, que na próxima semana vai pedir a libertação do ex-primeiro-ministro, por considerar que a sua prisão preventiva é ilegal. João Araújo indicou que o recurso que irá apresentar no Tribunal da Relação de Lisboa visa a libertação do ex-líder socialista, justificando que a sua detenção está ferida de ilegalidade por "questões substanciais", que não especificou.
O advogado disse ainda que pretende fazer esta semana uma visita de trabalho a José Sócrates no Estabelecimento Prisional de Évora para "analisar a situação e o despacho do juiz" de instrução.
Entre a “bandalheira” e a “normalidade”
A situação, já se sabe, suscita opiniões muito diversas e retrato disso é o fosso entre a leitura que o actual Presidente da República e o antigo chefe de Estado Mário Soares fazem do caso. A partir de Évora, onde foi ontem visitar o ex-primeiro-ministro, o fundador do PS qualificou o caso como uma “bandalheira”, enquanto em Abu Dhabi, onde se encontra em visita oficial (ver pág. 14), Cavaco Silva considerou que “as instituições democráticas estão a funcionar com toda a normalidade”.
Apesar da multiplicação, na comunicação social estrangeira, de notícias sobre a detenção de Sócrates, o Presidente da República diz acreditar que a imagem de Portugal não sofrerá grandes danos. “Até há duas semanas, Portugal estava com uma muito boa imagem nos mercados externos, na União Europeia e fora da União Europeia”, começou por dizer, numa menção temporal alargada para abarcar também o caso dos vistos gold. “Estou convencido de que essa imagem não se vai alterar significativamente”, afirmou Cavaco Silva, acrescentando: “Quem nos observa verifica que as instituições democráticas estão a funcionar com toda a normalidade no nosso país.”
Sobre o caso em si, recusou pronunciar-se: "No respeito pelo princípio da separação de poderes, eu entendo que, como Presidente da República, não devo acrescentar uma única palavra sobre esse assunto."
Livre desse jugo, o histórico líder socialista Mário Soares criticou duramente o facto de o ex-primeiro-ministro estar preso preventivamente, qualificando o caso como "político" e orquestrado por "malandros". "Todo o PS está contra esta bandalheira", disse, apesar de considerar que este caso não tem "nada a ver com os socialistas". Uma declaração que contrasta com o pedido feito por António Costa para que o partido não fosse envolvido "na apreciação de um processo que, como é próprio de um Estado de direito, só à Justiça cabe conduzir com plena independência".
Sobre o encontro propriamente dito, Soares usou a palavra "emoção" para o descrever: “Ficou emocionado por eu estar [a visitá-lo] e eu fiquei emocionado por vê-lo.” O ex-Presidente disse que falaram "sobre tudo", comentando que está "muito bem" e com "um moral fantástico". Com Maria Lopes, em Abu Dhabi, e Lusa
Mais informação esta manhã na edição em papel e online do PÚBLICO
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ANTÓNIO FONSECA
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